Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Fernanda Torres

Suicídios na torre Vessel em Nova York parecem uma maldição do monumento

Contrataria Ernesto Neto para recobrir a invenção amaldiçoada com uma teia de segurança, um ninho imune ao baixo-astral

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

No documentário “Faz de Conta que NY É uma Cidade”, de Martin Scorsese, a escritora Fran Lebowitz arrisca uma teoria curiosa sobre a influência da influência, para explicar o boom imobiliário nova-iorquino.

Segundo Lebowitz, Dubai ergueu seus arranha-céus tendo como modelo os arranha-céus de Manhattan. O espírito competitivo do petrodólar pariu as agulhas de concreto do deserto —a maior delas, Burj Khalifa, com quase um quilômetro de altura—, estabelecendo um novo paradigma de poder, luxo e riqueza, imitado, agora, por Nova York, a cidade que o inspirou.

É fato.

De Downtown a Uptown, do East ao West Side, crescem, como ervas daninhas, retângulos de vidro espelhado de gosto duvidoso e preços proibitivos. No número 432 da carérrima Park Avenue, um edifício de 400 metros de altura foi negociado por valores que variavam de US$ 15 a US$ 80 milhões a unidade, cerca de R$ 77 milhões a R$ 411 milhões.

Deus castiga extravagâncias e não tardou para que o arrependimento se abatesse sobre os condôminos da Torre de Babel. Rachaduras, vazamentos, infiltrações e rangidos de arrepiar a espinha, além da interdição constante dos elevadores, atestaram os erros de cálculo na estrutura e sua vulnerabilidade a ventos e intempéries.

Eleito três vezes consecutivas prefeito de Nova York, Michael Bloomberg enfrentou a crise posterior ao 11 de Setembro, apostando no turismo e na expansão imobiliária. Ao longo dos 12 anos de sua gestão, Nova York se rendeu a Dubai.

Desenho mostra uma pessoa andando em uma escada que faz ligação entre torres
Publicada em 1º de setembro de 2021 - Marta Mello

Dentre as anomalias no “new paliteiro”, nenhuma se destaca mais do que o Hudson Yards, localizado na borda do bairro de Chelsea com o rio Hudson.

Formado por seis gigantescas torres de escritórios, apartamentos e hotéis, ladeadas por um shopping center, uma casa de espetáculos e uma estação de metrô, o Hudson Yards ostenta, na sua praça central, uma escultura interativa de escadas conectadas. A estranha colmeia, ou meio abacaxi, permite ao visitante admirar o complexo a 46 metros do solo.

Deus castiga extravagâncias, repito. Planejada para se tornar a grande atração do pedaço, o Vessel —ou vaso— caiu nas graças dos suicidas.

O primeiro incidente aconteceu em fevereiro de 2019. Um garoto de 19 anos escalou o Vessel e se atirou do último andar. Em janeiro de 2020, num intervalo de menos de um mês, dois outros jovens repetiriam o feito, obrigando as autoridades a interditarem o acesso do público à instalação.

Reaberto em maio, o Vessel seria palco de mais uma fatalidade em julho, quando um menino de 14 anos pulou do oitavo patamar, depois de subir os incontáveis degraus na companhia dos pais e da irmã.

Desde a sua inauguração, em 2016, o Vessel já acumula quatro suicídios nas costas. Dentre as soluções aventadas, planeja-se elevar o guarda-corpo das escadarias e, pasmem, cobrar ingresso de entrada. Quanto valeria a determinação de um suicida? Dez dólares, US$ 20, US$ 100?

Atravessamos um momento angustiante da história. Pandemia, populismo nacionalista, cataclismo ambiental, terrorismo, guerra, recessão, descrença... Razões não faltam para dar adeus a esse mundo cruel.

Mas o guarda-corpo da espiral do museu Guggenheim, de Frank Lloyd Wright, é baixíssimo, e ninguém, até hoje, deu cabo da própria vida, lançando-se no vão central do belo museu. Talvez nem mesmo o bilhete caro e a elevação do guarda-corpo sejam suficientes para barrar o efeito depressivo do Vessel. O problema do Hudson Yards é que não há calor humano ali, não há nada em que se agarrar. Suas torres espelham a indiferença corporativa, o vazio consumista e a concentração de renda em curso.

Não à toa, um King Kong deitado, em tamanho natural, decora o jardim da portaria de um dos edifícios. O macaco mítico sorri para os selfies dos turistas, esquecido de que despencara do Empire State por causa da ganância irracional dos homens, que o Hudson Yards tanto exala.

O Vessel acrescenta ao horror que o rodeia um dado psíquico perturbador. Na tentativa de emular um dos labirintos de escadas de M. C. Escher, ele recria, em três dimensões, o pesadelo do gênio holandês.

Fosse eu prefeita de Nova York, contrataria outro artista, Ernesto Neto, para recobrir a invenção amaldiçoada com uma teia de segurança, um ninho imune ao baixo-astral. E o conectaria com as torres por meio de túneis suspensos, moles, quentes, orgânicos e entrelaçados. Por fim, promoveria uma pajelança xamânica para libertar os maus espíritos aprisionados no “Vaso”. Nunca antes, na história desse planeta, a aliança entre a ética e a estética se fez tão necessária.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.