No documentário “Faz de Conta que NY É uma Cidade”, de Martin Scorsese, a escritora Fran Lebowitz arrisca uma teoria curiosa sobre a influência da influência, para explicar o boom imobiliário nova-iorquino.
Segundo Lebowitz, Dubai ergueu seus arranha-céus tendo como modelo os arranha-céus de Manhattan. O espírito competitivo do petrodólar pariu as agulhas de concreto do deserto —a maior delas, Burj Khalifa, com quase um quilômetro de altura—, estabelecendo um novo paradigma de poder, luxo e riqueza, imitado, agora, por Nova York, a cidade que o inspirou.
É fato.
De Downtown a Uptown, do East ao West Side, crescem, como ervas daninhas, retângulos de vidro espelhado de gosto duvidoso e preços proibitivos. No número 432 da carérrima Park Avenue, um edifício de 400 metros de altura foi negociado por valores que variavam de US$ 15 a US$ 80 milhões a unidade, cerca de R$ 77 milhões a R$ 411 milhões.
Deus castiga extravagâncias e não tardou para que o arrependimento se abatesse sobre os condôminos da Torre de Babel. Rachaduras, vazamentos, infiltrações e rangidos de arrepiar a espinha, além da interdição constante dos elevadores, atestaram os erros de cálculo na estrutura e sua vulnerabilidade a ventos e intempéries.
Eleito três vezes consecutivas prefeito de Nova York, Michael Bloomberg enfrentou a crise posterior ao 11 de Setembro, apostando no turismo e na expansão imobiliária. Ao longo dos 12 anos de sua gestão, Nova York se rendeu a Dubai.
Dentre as anomalias no “new paliteiro”, nenhuma se destaca mais do que o Hudson Yards, localizado na borda do bairro de Chelsea com o rio Hudson.
Formado por seis gigantescas torres de escritórios, apartamentos e hotéis, ladeadas por um shopping center, uma casa de espetáculos e uma estação de metrô, o Hudson Yards ostenta, na sua praça central, uma escultura interativa de escadas conectadas. A estranha colmeia, ou meio abacaxi, permite ao visitante admirar o complexo a 46 metros do solo.
Deus castiga extravagâncias, repito. Planejada para se tornar a grande atração do pedaço, o Vessel —ou vaso— caiu nas graças dos suicidas.
O primeiro incidente aconteceu em fevereiro de 2019. Um garoto de 19 anos escalou o Vessel e se atirou do último andar. Em janeiro de 2020, num intervalo de menos de um mês, dois outros jovens repetiriam o feito, obrigando as autoridades a interditarem o acesso do público à instalação.
Reaberto em maio, o Vessel seria palco de mais uma fatalidade em julho, quando um menino de 14 anos pulou do oitavo patamar, depois de subir os incontáveis degraus na companhia dos pais e da irmã.
Desde a sua inauguração, em 2016, o Vessel já acumula quatro suicídios nas costas. Dentre as soluções aventadas, planeja-se elevar o guarda-corpo das escadarias e, pasmem, cobrar ingresso de entrada. Quanto valeria a determinação de um suicida? Dez dólares, US$ 20, US$ 100?
Atravessamos um momento angustiante da história. Pandemia, populismo nacionalista, cataclismo ambiental, terrorismo, guerra, recessão, descrença... Razões não faltam para dar adeus a esse mundo cruel.
Mas o guarda-corpo da espiral do museu Guggenheim, de Frank Lloyd Wright, é baixíssimo, e ninguém, até hoje, deu cabo da própria vida, lançando-se no vão central do belo museu. Talvez nem mesmo o bilhete caro e a elevação do guarda-corpo sejam suficientes para barrar o efeito depressivo do Vessel. O problema do Hudson Yards é que não há calor humano ali, não há nada em que se agarrar. Suas torres espelham a indiferença corporativa, o vazio consumista e a concentração de renda em curso.
Não à toa, um King Kong deitado, em tamanho natural, decora o jardim da portaria de um dos edifícios. O macaco mítico sorri para os selfies dos turistas, esquecido de que despencara do Empire State por causa da ganância irracional dos homens, que o Hudson Yards tanto exala.
O Vessel acrescenta ao horror que o rodeia um dado psíquico perturbador. Na tentativa de emular um dos labirintos de escadas de M. C. Escher, ele recria, em três dimensões, o pesadelo do gênio holandês.
Fosse eu prefeita de Nova York, contrataria outro artista, Ernesto Neto, para recobrir a invenção amaldiçoada com uma teia de segurança, um ninho imune ao baixo-astral. E o conectaria com as torres por meio de túneis suspensos, moles, quentes, orgânicos e entrelaçados. Por fim, promoveria uma pajelança xamânica para libertar os maus espíritos aprisionados no “Vaso”. Nunca antes, na história desse planeta, a aliança entre a ética e a estética se fez tão necessária.
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