Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

Complexo de inferioridade não me deixava ver os podres dos anos 1960

Toda época parece plena de heróis incontestes que não resistem a um exame mais detalhado

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A inveja dos primos mais velhos dominou a minha adolescência. O complexo de inferioridade por ter acordado para a vida dez anos depois da sacrossanta década de 1960. Requebrando à la Travolta, eu comparava os Bee Gees aos Beatles, o Roger Moore ao Sean Connery, o "Star Wars" à nouvelle vague e amaldiçoava a hora em que viera ao mundo.

Parte da rebordosa era fruto da ignorância, admito. O Brasil fervilhava com os melhores LPs do Roberto, com Jorge Ben, Tim Maia, Raul Seixas e Paulinho da Viola, com os Secos e Molhados, os Doces Bárbaros e os Novos Baianos, mas é difícil praticar o distanciamento crítico em tempo real.

Cresci num país falido pela crise do petróleo e fechado pela ditadura militar. Eu só descobriria Bob Marley muito depois da anistia e devo ao Asdrúbal Trouxe o Trombone a crença de que algo de novo, e próprio, caberia a mim e os meus.

Hoje, olho meu filho de 21 anos e percebo nele a mesma angústia. A falta de futuro visível em meio ao caldeirão de ódio, reacionarismo, patrulhas, crises sanitárias, políticas e climáticas. E com o paralelo entre mim e meu rebento na cabeça, assisti, a conselho do inigualável Antonio Prata, ao documentário “1971”, da Apple TV+.

"1971" aborda o primeiro ano da década de 1970, através das músicas lançadas no período seguinte ao fim dos Beatles, às mortes prematuras de Janis Joplin e Jimi Hendrix e à violência dos Hells Angels no Festival de Altmont. O conflito no Vietnã escalava, junto com a paranoia de Richard Nixon. Havia um misto de nostalgia, raiva e desprezo no ar, pelo fracasso do projeto paz e amor de Woodstock.

homem loiro de óculos em fotografia vintage
Cena de '1971: o Ano em que a Música Mudou Tudo', série documental da Apple TV+ - IMDb/DIvulgação

A cruzada antiguerra de John e Yoko, o concerto de Bangladesh de George Harrison e o feminismo de Carole King; o orgulho gay de Elton John, a androgenia de Ziggy Stardust e o black power, avô do rap e do hip-hop, tudo o que me curaria da inferioridade geracional nascia ali, naquele ano triste e indigesto, abrindo a porteira para o niilismo punk, para Prince, Terminator X, Kraftwerk, Talking Heads e o Brock.

Terminei "1971" convencida de que o desencanto e a fúria também nos guiarão para fora do lodaçal. A pax romana globalista, com seu ideal duty free shop, ruiu. As trincheiras progressistas, cuja vitória parecia consumada, se armam, agora, para enfrentar as hostes conservadoras negacionistas da maioria, ou minoria, não se sabe ao certo, até então silenciosa.

O confronto se reflete na nossa vida íntima e envolve reparações históricas, a ética dos algoritmos, a fragilidade da democracia, a desigualdade crescente e a ameaça real do fim do mundo. Perto de adentrar a terceira idade, sinto ira, frustração, medo e cansaço, mas não aguento mais a melancolia. Chega de saudade. "1971" atesta a potência criativa das oras brutais.

E assim chego a "Marianne & Leonard", documentário da Netflix, q que assisti na sequência de "1971" e que me fez enterrar de vez a reverência aos anos 1960. A obra me foi vendida como a mais bela história de amor entre o poeta e a musa libertários, mas é puro egoísmo machista travestido de "peace and love".

Leonard Cohen e Marianne Ihlen se conheceram na ilha de Hidra, a Búzios grega dos descolados, no início da imaculada década. No casamento aberto, a bela e altruísta Marianne ampara Cohen na sua viagem interior movida a cigarro, álcool e drogas, que aceleram seu fluxo de pensamento para conceber um romance caótico revolucionário.

O escritor deprimido carece de solidão e, alçado ao estrelato como cantor, passa a ir e vir de Hidra, condenando Marianne ao posto eterno de Penélope. Ela aceita. E quando Cohen elege uma segunda musa, a jovem Suzanne, com quem teve dois filhos, cabe à nova escolhida expulsar Marianne de Hidra. O covarde nem dá as caras.

O de profundis crônico leva o pretenso gênio ao isolamento num mosteiro budista. Após cinco anos de meditação, Cohen declara que o amor acontece quando aquilo que está contido no homem passa a habitar a mulher, e vice-versa. O problema, continua, é que o que o homem contém é grande demais para caber na mulher e o que a mulher contém e pequeno demais para preencher o homem. Jece Valadão em pele de rinpoche.

Cohen lembra outro ícone incontestável da contracultura, Jean-Luc Godard , cuja mesquinhez e o ciúme doentio é descrito com leveza pela atriz e antiga companheira, Anne Wiazemsky, no romance autobiográfico "Um Ano Depois".

Toda época, vista em perspectiva, parece rica e palatável, plena de heróis incontestes que não resistem a um exame mais detalhado. Não anda fácil para ninguém, mas 2020 não é pior do que 1960, 70, 80, 90 ou 1000. Cansei de reclamar. A saída para o atoleiro, "1971" adverte, será gestada a bile.

Aumenta aí Os Ramones!​

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