Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

Por que o pênis aparece tão pouco em filmes e séries? Marlon Brando que o diga

O nu feminino, ao contrário, historicamente pulula nas telas de frente e de costas, sem restrições

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Perdoe, leitor, o assunto sem propósito. É que o ano acabou. E desconfio que seguirá terminando até o fim do ano que vem. No espaço de uma volta e meia da Terra ao redor do Sol, não enxergo sinal de recomeço possível, antes de janeiro de 2023. Passageira desse trem descarrilhado, dei de evitar o noticiário e me ater a reflexões ocas, como a do tabu do pênis na indústria do audiovisual.

Escapismo? Que seja. O escárnio é tanto —o Inep, a PF, o desmatamento, o rombo, a crise institucional, a manhã com Michele e a sacaneada da família real brasileira no secretário de Cultura durante o tour das Arábias—, o menosprezo é de tal ordem que a mente busca a fuga como remédio para a indigestão.

Me atentei ao tabu do pênis assistindo, com atraso, ao excelente "Carlos, O Chacal", que muito recomendo.

Uma produção franco-alemã para a televisão de 2010, dirigida por Olivier Assayas, sobre a vida do terrorista Ramirez Sánchez, interpretado pelo também venezuelano Édgar Ramírez.

Na manhã seguinte ao primeiro atentado bem-sucedido, o Chacal acorda despido sobre um colchão surrado. É dia. Sonolento, ele se senta com as pernas abertas e se deixa estar. Depois, ergue-se diante da lente, vai até o espelho e admira o corpo magro, jovem, forte, extremista. É um plano longo, sem sexo, mas sensual.

E a cena se repete como passagem de tempo, um ou dois capítulos adiante. Fracassado, o Chacal desperta em outro colchão podre. Trinta quilos mais gordo, ele arrasta a barriga de barril, as coxas, os braços roliços, a bunda e o pau pelo quarto. A ascensão e queda do guerrilheiro nu. É um dos pênis mais bem inseridos na trama da história do cinema.

Ilustração representando diversos homens nus tendo seus pênis à mostra
Ilustração publicada em 24 de novembro de 2021 - Marta Mello

Chacal é um anti-herói. Anti-heróis são mais propensos ao risco e ao ridículo, mas o bom tom exige reservas do herói. Daí as sombras estratégicas nas cenas de amor, a fartura de lombos e ombros, o não acabar de bíceps, as nádegas a galopar. É a convenção. As mulheres, ao contrário, pululam nuas de frente e de costas sem restrições. Exploração?

Bem possível. Mas não só.

Não é fácil, para um homem, se despir em público. A intimidade da fêmea é, por natureza, virada para dentro. A do macho é nervo exposto, é marca pessoal, o outro rosto do sujeito, seu segundo caráter. Todo nu masculino é ginecológico.

Santo Agostinho já praguejava contra a independência enervante do órgão. Michelangelo diminuiu as proporções do gigante Davi, para torná-lo apresentável. Adorado na Antiguidade, o pênis foi excomungado na Era Cristã e, hoje, carrega 2.000 anos de exigências nas costas.

Não há como ignorá-lo ou exibi-lo sem a consciência do ato.

O giro de frente de Jaye Davidson, a trans de "Traídos Pelo Desejo", de Neil Jordan, fez história em 1992. A castração de "O Império dos Sentidos" impressiona até na lembrança. "Shame", filme de Steve McQueen de 2011, sobre as agruras de um ninfomaníaco, é presença obrigatória na lista de aparições. O début do colosso de Michael Fassbender nas telas.

O alemão caminha por um corredor escuro como veio ao mundo. Conforme avança na direção da câmera, a cabeça e os pés saem de quadro, o peito e os joelhos, até o close espantoso da virilha. Na sala em que eu estava, a plateia recuou na cadeira e alguém suspirou um "minha Nossa Senhora...". Fassbender suspeita que a repercussão do plano tenha lhe custado o Oscar. É provável. Não se quebra o tabu do pênis impunemente, quanto mais pecando por ostentação.

Marlon Brando lidou com o problema oposto. Em sua autobiografia, grande parte do capítulo dedicado a "O Último Tango em Paris" é gasto com o vexame de eunuco que o traumatizou, durante uma noite gélida de filmagem na capital francesa. O ar glacial do apartamento retraiu os músculos do ator, fazendo o aparato reprodutor de Brando desaparecer entre as pernas. A preservação da espécie em detrimento da honra do indivíduo, salva pela penumbra misericordiosa do fotógrafo.

O tabu do pênis é o último refúgio da masculinidade, poucos tentam, ou desejam, de fato, enfrentá-lo. Mas "Game of Thrones" já liberou o nu frontal dos rapazes para a faixa de adolescentes; os robôs de "Westworld", porque são robôs, desfilam a pelo sem preconceito; e a ducha do amante bem-dotado levou "Sex/Life" aos trending topics. A nova versão de "Cenas de um Casamento" quase arriscou o pelado explícito, mas preferiu escurecer no contraste.

Um dia, o pênis ainda vai marcar presença na novela das nove. Mas deixa para depois de 2023.

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