Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

Audiolivros, que crescem no Brasil, ampliam acesso à arte para pessoas cegas

Quando eficiente, a narração das obras provoca não só o delírio imagético da literatura, mas encanta como música

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O italiano foi das poucas conquistas que fiz, nesses dois anos de letargia pandêmica. Já me desembaraço no passato remoto, no futuro semplice e no traspassato da mais sonora das línguas, tendo descoberto, no processo, o valor inestimável do audiolivro.

Lavei muita louça com a tetralogia de Elena Ferrante no ouvido, narrada por Anna Bonaiuto; cozinhei com Moro Silo esmerilhando n’ "A Cidade Invisível" de Calvino; e corri quilômetros embalada pelo "O Nome da Rosa" e pelo "O Pêndulo de Foucault" de Umberto Eco, na voz de Tommaso Ragno. No YouTube, existe uma gravação estupenda de Vittorio Gassman recitando "A Divina Comédia" de Dante.

A visão é ferramenta necessária para se decifrar as palavras impressas num livro, mas a experiência da leitura nada tem a ver com o que entendemos por enxergar. Ler é ver para dentro, ver na imaginação, na memória. As adaptações cinematográficas de obras literárias costumam decepcionar porque restringem a trama a uma só paisagem, ou rosto, empobrecendo o jogo fantasioso de associações da mente.

Cada um de nós tem uma imagem personalíssima de Riobaldo, de Capitu, Brás Cubas e Maria Eduarda na cabeça, mas é impossível descrevê-los com exatidão, produzir um retrato falado desses vultos que oscilam entre mil aproximações sobrepostas. Macunaíma é Paulo José, é Grande Othelo, é Peri, Aritana e Cacá Carvalho; e não é nenhum deles, mas aquele que li e a quem não consigo atribuir forma fixa.

Esse aspecto nebuloso, imaterial da leitura, se vê preservado no áudiolivro. Quando eficiente, a narração em voz alta provoca não só o delírio imagético da literatura, como reproduz o caráter encantatório da música, capaz de entrar pelos poros sem esforço maior de concentração do ouvinte. Sim, é mais difícil ler do que ouvir, não advogo trocar uma modalidade por outra, mas elas não são excludentes. Proust é para ler. Lima Duarte e Caio Blat arrasam n’"O Grande Sertão Veredas", mas sem lê-lo, como sabê-lo?

Confesso, no entanto, que preferi ouvir os dois romances de Umberto Eco na voz de Tommaso Ragno, do que conhecê-los no silêncio. São obras policialescas, Ragno dá colorido às cenas, encarna o falar dos heróis —Anna Bonaiuto faz o mesmo com o ótimo L’"Amica Geniale"—, sem deixar nada a dever à pura literatura.

Muitas vezes, era como se a visão me atrapalhasse e fosse melhor fechar os olhos no quarto escuro, para me perder no labirinto conspiratório construído por Eco.

Mari Stockler, grande amiga, me enviou um documentário curto sobre Moondog, compositor americano da metade do século passado, poeta, inventor de instrumentos, teórico e mendigo excêntrico. Conhecido como o Viking da Sexta Avenida, de Nova York, Moondog acabou ficando cego aos 16 anos, depois da explosão de uma lata de dinamite, da qual tentava tirar sons.

Ilustração representando um rosto de perfil com um fone de ouvido, desenho sobre o qual se inscreve um trecho do livro O Nome da Rosa, em italiano
Ilustração publicada em 8 de dezembro de 2021 - Marta Mello

Ouça "Bird’s Lament", que ele compôs em homenagem ao gênio do jazz, Charlie Parker. O sentido de audição aguçado de Moondog dota a sua sonoridade de uma dimensão extra. É como se ele ajustasse o foco dos nossos ouvidos. Os instrumentos, embora fundidos no corpo da música, existem em separado, com contornos concretos quase visíveis.

Mari, que me apresentou Moondog, é mãe de Maria Carvalhosa. Dona de inteligência e beleza assombrosas, Maria perdeu a visão recentemente, suspeita-se, por erro médico. A revista Piauí publicou um artigo dela, sobre a cegueira e a surdez do mundo.

Desde criança, Maria pensava se tornar editora de livros. Gostava de ler. O comprometimento do nervo ótico ocorreu junto com a eclosão dos aplicativos de leitura de data e de áudio e conteúdo para a
internet. Maria tornou-se consumidora voraz e a editoria de uma plataforma de audiolivros e podcasts começa a se desenhar para ela, num mercado que, torço, deixe de engatinhar no Brasil.

Maria é filha de Mari e do artista plástico Carlito Carvalhosa. Sua história suscitou, em todos nós, pintores, atores, cineastas, diretores, músicos e escritores próximos, uma profunda reflexão sobre as diferentes maneiras de sentir e de se expressar na arte.

Os audiolivros em italiano foram a ponte entre o universo expandido da Maria e o teatro, onde cresci e me criei. Walmor Chagas dizia que o ator serve para fazer o sujeito que lê e não entende entender. Num país de analfabetos funcionais, e incluo os alfabetizados, não é pouca coisa.

Hoje, sonho superproduções teatrais radiofônicas e invasões wellianas de Marte.

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