Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres
Descrição de chapéu Rússia

O engole-vento, o bicho-preguiça e os bombardeios russos a Kiev

E se o presidente Vladimir Putin, diante da morte, quiser levar consigo o resto da humanidade?

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O engole-vento —também conhecido no Brasil como bacurau, ibijau, curiango, coriavo e mariangu— é um pássaro de hábitos noturnos, que coloca seus ovos na terra e possui um bico largo, de orelha a orelha, capaz de abocanhar até mariposas. Seu canto melancólico evoca sentimentos fúnebres e o temperamento ríspido e glutão o associa à avareza, ao ciúme e à inveja.

Claude Lévi-Strauss dedica grande parte de "A Oleira Ciumenta", livro sobre os mitos ameríndios que tratam da origem da cerâmica, ao engole-vento. Mais de 60 espécies deste pássaro habitam um território que se estende do norte da Argentina ao sul dos Estados Unidos, e as lendas a seu respeito apresentam similaridades notáveis, conjugando a voracidade oral com a incontinência anal.

O engole-vento come muito e caga demais. Algumas histórias contam que seus peidos quebraram os grandes rochedos, dando origem a todas as pedras da Terra. Outras, falam em chuvas de excrementos incandescentes, meteoritos de bosta, causadores de imensa destruição.

Versões algonquinas o associam ao trovão e as da América do Sul ao fogo de cozer cerâmica, que teria sido tirado à força de dentro de sua garganta, lhe arregaçando o bico. A gula insaciável do engole-vento resulta em retenção intestinal, seguida de explosão em forma de diarreia cataclísmica. O espaço é curto para resumir a relação que o antropólogo estabelece entre excremento e argila; e a comparação que faz entre o fiel ceramista joão-de-barro e o egoísta pula a cerca engole-vento, que nem ninho constrói.

Evoco o pássaro porque as imagens dos bombardeios russos a Kiev me fizeram pensar na sua caganeira abrasadora. Na nova ordem geopolítica que se delineia, o planeta se divide entre três gigantescos engole-ventos: os Estados Unidos, a China e a Rússia, sendo que o líder da última, ao que parece, endoideceu.

Há quem compare a Guerra do Golfo de Bush filho à de Putin, na Ucrânia, ambas baseadas em mentiras grosseiras. A primeira, em falsas alegações de que o Iraque possuía armas químicas capazes de provocar matança em massa; e a segunda, na absurda desnazificação do país vizinho.

Ninguém é santo nessa história, mas um horror não justifica o outro. De todas as teorias sobre as razões que levaram Putin a ordenar o ataque —o avanço da Otan sobre os territórios de influência da antiga União Soviética, os movimentos separatistas e o isolamento do novo czar durante a pandemia, que teria agravado a sua paranoia "KGBiana"—, nenhuma me apavora mais do que a hipótese de que o ex-espião esteja enfrentando uma doença terminal.

Seu rosto inchou um pouco, talvez pela idade, talvez, afirma a tese, pelo uso da cortisona, medicamento que, em doses elevadas, pode afetar a estabilidade mental do paciente. É mesmo de arrepiar. Um semideus, movido a cortisona e no controle de um arsenal nuclear, diante da morte inevitável, se sente inclinado a levar consigo o resto da humanidade, soltando o dedo no botão vermelho.

Seja qual for a causa, o fato é que coube a um colega meu, um ator, Volodymyr Zelenski, liderar a resistência contra o desembestado engole-vento das estepes siberianas. A fragilidade e a resiliência de Zelenski remetem a um outro personagem muito presente nos mitos de "A Oleira Ciumenta": o bicho-preguiça. Os ameríndios consideram o bicho-preguiça, e não o macaco, o animal mais próximo do homem, devido à sua rotina intestinal ordeira e comedida.

Ao contrário dos bugios que, trepados em galhos altos, defecam por toda parte e ainda usam seu cocô como arma de defesa, o bicho-preguiça possui um metabolismo lentíssimo e desce das árvores apenas uma vez por semana, para fazer suas necessidades sempre no mesmo lugar. O esmero e a continência com as próprias fezes seriam a prova suprema de sua civilidade.

Ilustração publicada em 2 de março
Ilustração publicada em 2 de março - Marta Mello


O embate entre Putin Engole-Vento e Zelenski Preguiça é um confronto entre o excesso e o comedimento, entre o poder desmedido e o respeito mútuo entre as nações. O mundo está mesmo pequeno demais para tanta gente e todo aperto termina sempre em barbárie. Para aliviar as tensões, seria preciso baixar o metabolismo, controlar as ambições e, assim como o bicho-preguiça, organizar a merda.

Oremos. Enquanto Putin não solta seu traque nuclear nos inimigos, vale conferir o TikTok dos soldados ucranianos na fronteira, é de chorar.

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