Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Propina de Bolsonaro no MEC com pastores é rebatida com Carnaval

Ato do MST com pessoas pintadas de ouro egípcio não poderia ter sido mais cirúrgico contra falsos profetas

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Bem que Milton Ribeiro tentou se agarrar à mão de Deus, mas o Senhor preferiu soltar. O Ministério da Educação de Jair é mesmo de alta rotatividade. Com menos de um ano de gestão pela frente, o próximo a esquentar a cadeira deveria se limitar a lançar a campanha "Educação pra quê?", resumindo o trabalho realizado pelos quatro antecessores na pasta.

Dentre todas as manifestações de repúdio à profanação da Bíblia e ao propinaço que, suspeita-se, rolaram à solta no MEC, destaco a do MST, ocorrida no dia 25 de março, em Brasília. Dez! Nota dez, no quesito alegoria! Pintados de dourado egípcio e carregando um bezerro de ouro num andor, os participantes distribuíram barras falsas do vil metal, numa apresentação digna do teatro Oficina. Moisés aplaudiria de pé.

Ilustração que representa o vulto do rosto do presidente do Brasil, em cinza escuro, tendo na parte dos dentes o recorte de uma foto de barras de ouro douradas
Ilustração publicada em 30 de março - Marta Mello

Só mesmo um ato cívico carnavalesco para dar conta do milagre da multiplicação de pastores picaretas que assola o país. Pi-ca-re-tas, repito, numa alusão às palavras do líder da bancada evangélica, o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), no GloboNews Debate.

A fé move montanhas. Respeito muito os que a têm, e desprezo, em igual medida, os que se valem da mesma para explorar os incautos.

Na Rússia, diante de um estádio lotado de devotos, Vladimir Putin apelou para o Novo Testamento, a fim de justificar as baixas da sua guerra particular. "Não existe amor maior do que dar a própria vida pelos verdadeiros amigos", disse, citando João Evangelista, num discurso já preparado para os familiares de soldados abatidos, que retornarão para casa num caixão.

O grande erro dos soviéticos, segundo o czar, foi ter dado as costas para a Igreja Ortodoxa. Com a bênção do patriarca, o bem afortunado Putin fez a alegria dos oligarcas próximos, jurando zelar pela moral e pelos bons costumes dos cordeiros da mãe Rússia. Aleluia! Agora, só falta apertar o botão vermelho e deflagrar o Armagedão.

No Brasil do Mito, o Deus acima de todos, ao que parece, esconde o toma lá dá cá dos que pregam com uma arminha na mão. Chuta-se para o corner o Estado laico, se proclamando representante direto de um Pai Eterno Todo Poderoso. Facilita demais.

Mas não é de hoje que o autoritarismo recorre ao poder divino para governar. Alguns estudiosos defendem, inclusive, que a religião pariu o Estado.

Essa é uma das teorias debatidas pelo antropólogo David Graeber e pelo arqueólogo David Wengrow em "The Dawn of Everything", livro sobre a origem da desigualdade, que acaba de ser lançado nos Estados Unidos e está disponível na versão ebook no Brasil.

Todos aprendemos na escola que a revolução agrícola gerou um excedente de produção, que permitiu a concentração de riqueza e o surgimento de castas, classes, cidades, reinos e, mais tarde, do Estado. Mas o processo que levou caçadores coletores paleolíticos a optarem pelo sedentarismo agrícola ainda não é totalmente explicado.

Em "Homo Sapiens", o historiador Yuval Noah Harari defende a sedutora ideia de que foi o trigo que nos escravizou, nos condenando ao trabalho insano de arar, plantar e colher. Graeber e Wengrow criticam o determinismo da teoria e apostam, entre outros fatores, no poder de persuasão divino.

Padarias inteiras foram encontradas em tumbas de faraós egípcios, considerados deuses vivos e filhos diretos de Osíris, inventor da agricultura e deus dos mortos. E os mais antigos fornos de assar pão em larga escala do Egito, escavados em sítios arqueológicos vizinhos a cemitérios de múmias. As aluviões do Nilo podem ter prosperado graças às sagradas demandas fúnebres, as mesmas que exigiam o sacrifício de todos os que serviram ao soberano em vida, para continuarem a assisti-lo no além.

Por um Deus, morre-se e mata-se em devoção cega. É por isso que não se deve misturar política com religião.

A pequena cidade de Abadiânia, em Goiás, floresceu na aba de um João que, não à toa, acoplou Deus ao nome. O milagreiro fez do município um feudo, desenvolvendo o turismo e o comércio da região, em torno de um centro de atendimento místico. João Teixeira de Farias reunia, em si, os três fundamentos que Graeber e Wengrow consideram essenciais para o surgimento do Estado: a violência, o carisma e o conhecimento secreto.

Muitas das vítimas de estupro do charlatão demoraram a denunciá-lo por temerem a violência de seu exército de capangas, o seu carisma junto aos poderosos e o ódio dos que acreditavam nos seus poderes secretos.

O MST não poderia ter sido mais cirúrgico no protesto contra os falsos profetas desse projeto de Brasil egípcio abadiânico.

Que as urnas nos iluminem em outubro.

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