Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres
Descrição de chapéu casamento

Envelhecer dá saudade do vigor da juventude, dos hormônios e dos meniscos

Sem joelhos, os heróis dos recreios deram adeus aos esportes radicais, e as moças criadas aderiram à tintura de cabelo

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Um amigo de longuíssima data resolveu se casar em grande estilo. Já passado dos 55 e dormindo sob o mesmo teto da amada há quase uma década, ele quis oficializar a união não só do casal, como também dos companheiros da vida toda. Éramos cerca de 50 pessoas, 50 padrinhos, segundo as palavras da noiva, de quem fui colega de primário.

A lembrança mais simbólica que guardo do noivo é a dele acampado no lamaçal do Festival de Águas Claras de 1983, com uma Variant azul bebê estacionada ao lado da barraca de nylon da Mesbla coberta de lama. A mãe, moderna, o acordava de madrugada para grafitar os muros da cidade com os irmãos, antes de ir para o colégio. A família sempre esteve à frente do seu tempo.

Passeando pela casa paramentada para as bodas —sim, foi no civil o casório—, entre os grupelhos que se formavam e se dispersavam a contento, admirei a tribo. Envelhecemos.

Ilustração que representa homens e mulheres dançando e sorrindo vestindo camisetas e vestidos desenhados com canetas coloridas
Ilustração publicada em 27 de abril - Marta Mello

Os que não ficaram carecas ostentavam madeixas grisalhas. As moças criadas, sem coragem de assumir o branco dos fios, continuavam, como eu, agarradas à tintura de cabelo. Os corpos robustos, embora charmosos, exibiam barrigas proeminentes e rugas indisfarçáveis. Poucas plásticas visíveis, mas muitas planejadas. E, por trás de cada rosto maduro, resistia a expressão de moleque, o contorno da adolescência em comum, impossível de ser apagado.

Flanavam, no recinto, inúmeros casais trocados ao longo das décadas. O grupo enfrentou mais de uma temporada de separações em série e rearranjos afetivos. O Rio de Janeiro é um ovo. As crises conjugais costumavam acontecer em levas, como numa dança das cadeiras, propiciando o troca-troca, de forma que muitos dos presentes, uns mais e outros menos, se conheciam biblicamente.

Fulano, que amava beltrana, hoje está com sicrana. E o sicrano, que quase morreu por fulana, gargalhava, agora, com o beltrano que a roubara dele. O tempo tudo perdoa, tudo cura e acalma. Sábio é aquele que se casa depois de velho, com os hormônios apaziguados, como fazia meu amigo, naquele dia de festa.

No papo vem, papo vai das bodas, predominava o debate sobre a saúde dos ossos, do coração e das veias, seguido de intensa permuta de zaps de cardiologistas, osteopatas e gastroenterologistas.

Todos os antigos craques ginasianos da bola perderam os meniscos. Sem joelhos, os heróis dos recreios deram adeus aos esportes radicais, substituindo-os por entediantes sessões de fisioterapia, hidroginástica e pilates.

Dois ou três sobreviventes de infarto riam soltos, ao lado dos que tiveram as artérias desobstruídas por stents; quatro ou cinco adeptos do CPAP louvavam a cura do ronco e da temível apneia, graças ao aparelho que injeta ar narina adentro, durante as noites de sono. Alguém ergueu um brinde à ciência e todos a saudamos com entusiasmo.

Um dos convidados foi aplaudido ao revelar que receberia, em breve, a primeira prótese femoral da turma. Outro, num canto, se vangloriava de ser o campeão brasileiro de cálculos renais. Uma jovem senhora se preparava para uma cirurgia complexa de coluna e a viúva recente se deu o direito à alegria ébria, depois da longa temporada de luto.

Um flerte inusitado entre solteiros tardios —recém-divorciados— surgiu em meio aos casais acomodados há séculos, casais de todos os gêneros, diga-se. Há sempre lugar para o romance, até quando se atinge a quase terceira idade, e o Viagra está aí, à mão, para alívio dos vetustos alfas.

A cerimônia foi uma reunião comovente de ex-combatentes, brindada com um ciclone tropical que, naquela noite de abril, varreu a Guanabara.

Eu teria ficado até tarde, mas havia me comprometido com o filho caçula a levar 28 adolescentes para o sítio, em comemoração do seu aniversário de 14 anos. Caso tivesse parido cedo, poderia até ser avó, mas adiei a gestação para depois de 40 e, hoje, lido com fulgurante energia da prole, perto de romper a barreira dos 60.

Pouco bebi, para evitar a ressaca, e, na manhã seguinte, subi a serra sem a companhia do pai, que anda labutando aos sábados. O vigor dos que acabaram de largar a infância era tamanho que até o cachorro pediu abrigo no meu quarto, exausto da gritaria.

Com articulações tinindo, eles corriam, pulavam e chutavam, sem saber que a conta viria, num futuro ainda distante. E o amor no ar, embalado pelo excesso de feromônios, unia os protocasais.

Éramos nós, os da cerimônia, 40 anos atrás, ainda alheios às traições, mágoas e desesperos, às conquistas e euforias que nos consumiram e os consumirão. Cópia exata, como numa viagem no tempo, feita em menos de 24 horas.

A vida é mesmo um mistério.

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