Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

Guerra na Ucrânia foi a pá de cal em meus sonhos de um mundo possível

Vivemos o pesadelo miliciano da inépcia de arminha na mão, no qual artistas viraram vampiros argentários do erário

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Me dei conta do fenômeno outro dia, ao despertar, depois de mais uma madrugada de apagão. A guerra na Ucrânia, creio, foi a pá de cal dos meus devaneios noturnos, o fim de um mundo sonhável e possível.

O planeta fora do eixo, o ódio generalizado, a cultura tratada aos pontapés, o cataclismo climático... O acúmulo de más notícias, associado ao isolamento social dos últimos dois anos, me fez embarcar no modo sobrevivência. Reduzi as expectativas a zero, de tal forma que o exercício de viver apenas para cumprir bem o dia acabou por afetar aquilo o que eu tenho que mais íntimo e misterioso.

O cérebro é plástico. Uma alegria intensa ou trauma severo estimulam as sinapses, cavando um leito caudaloso de associações mentais, capazes de levar o sujeito pensante a depressões crônicas e euforias descabidas. No meu caso, o exercício consciente de um não futuro provocou a seca. Sem sofrimentos maiores e numa frieza até cômoda, parei de desejar e Morfeu me abandonou.

Ilustração que representa um quatro com paredes azuis e uma janela por onde entram raios de luz branca, tendo uma lua, também branca, no céu
Ilustração publicada em 13 de abril - Marta Mello

Sei do ridículo de vir aqui falar do breu das minhas noites de sono. Dormir é luxo permitido a poucos, sonhar, então, nem se fala. As carências, injustiças e iniquidades, a loucura concreta é tamanha que pouco ou nenhum espaço sobra para subjetividades.

Volto, portanto, à realidade e descrevo um jantar de reencontro com conhecidos que não via desde o racha do pleito de 2018. Havia, em mim, a esperança de que os quatro anos desse desgoverno horrendo pudessem nos reaproximar. Só que não.

Evitamos a todo o custo a política, mas a descrição de umas férias da dupla, passadas no Chile de 2011, acabou resvalando nas manifestações estudantis e na vitória recente de um dos líderes do movimento, Gabriel Boric. "Elegeram aquele palhaço", desabafou um deles, depois de relembrar os percalços vividos na turbulenta Santiago de então que impediram a plena realização do sonho... Mais uma vez o sonho... turístico dos dois.

"Elegeram aquele palhaço", ele disse, e eu me calei num silêncio estéril. Não quis argumentar. A ambos, pouco importavam as convicções ultradireitistas do opositor de Boric, José Antonio Kast, que vão muito além do liberalismo feroz, valendo-se de um populismo retrógrado, lenga-lenga neofascista que prospera em nome de um Deus que desconhece a misericórdia.

Eles repetirão o voto da eleição passada, tive certeza. Não há Queiroz, Queiroga ou Weintraub; não há Pazuello, Salles, Heleno, Damares, pastor Gilmar ou Bíblia adornada com Milton Ribeiro; não há queimada, milícia ou garimpo ilegal que os demova da raiva acumulada. O palhaço era Boric. A palhaça era eu, por profissão.

A mudez que me abateu foi um abismo imenso, semelhante ao buraco escuro onde tenho passado as noites.

Ailton Krenak, no livro "Ideias para Adiar o Fim do Mundo", se diz preocupado com os brancos que enfrentam o "humanismo" mortífero do Ocidente, do "povo da mercadoria", que se define por coisas e despreza a metafísica, aquilo que tentam nos dizer os sonhos.

"A instituição do sonho não como experiência cotidiana de dormir e sonhar, mas como exercício disciplinado de buscar no sonho as orientações para as nossas escolhas do dia a dia. Para algumas pessoas, a ideia de sonhar é abdicar da realidade [...]. Porém, também podemos encontrar quem não veria sentido na vida se não fosse informado nos sonhos, nos quais pode buscar [...] a resolução de questões práticas que não consegue discernir, [...] mas que ali estão abertas como possibilidade."

Fernando Pessoa diz que "ler é sonhar pela mão de outrem", Shakespeare, em sua última peça, "A Tempestade", que "somos feitos da matéria dos sonhos", e Calderón De La Barca, que a própria vida é sonho.

A arte é impregnada de sentido onírico, de um desejo prático de traduzir impressões e sentimentos impalpáveis.

No Brasil, a classe artística foi tachada de mama tetas. Uma campanha de difamação bem-sucedida, que transformou cantores, atores, diretores, músicos, bailarinos e escritores em vampiros argentários do erário.

As leis de incentivo à cultura serviram de instrumento para os mesmos larápios que continuam a produzir miséria, sugando o dinheiro da educação, da saúde e da ciência; mas a falácia do mama tetas vingou como verdade, calando um setor que já nos fez sonhar sermos concretistas, modernistas, antropofágicos, bossanivistas, tropicalistas, chanchadistas, rodrigueanos, cinemanovistas, sambistas, futuristas, sincretistas... Vivemos o pesadelo miliciano da inépcia de arminha na mão.

Minhas noites sem sonho são resultado da estupefação, do silêncio daquele jantar com gente educada que perdeu a fé na imaginação.

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