Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres
Descrição de chapéu internet

Depois do Tamagotchi e do QAnon, aguardo o golpe de Bolsonaro nas urnas

David Bowie já alertava que a internet era alienígena e, após o flashmob no Capitólio, agora é a vez da tempestade no Brasil

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"A internet é uma forma de vida alienígena, que acaba de aterrissar no planeta", disse David Bowie em entrevista concedida ao Daily Politik em 1999.

O Vale do Silício, criador da besta, já confessou ter se valido da lógica dos jogos de azar para fidelizar usuários. Importado dos velhos cassinos, todo o aparato de frustração e recompensa, de likes e hates empregados nas redes, tem afetado a psique do planeta, parindo seres mais irritáveis, solitários, paranoicos e obsessivos do que seus avós.

Ilustração feita em linhas sob fundo preto. Na imagem, um homem com cabelos curtos penteados para trás e vestindo camisa está com expressão brava olhando para o notebook. As linhas da cabeça são brancas e as do corpo azuis, vários pontos vermelhos saem da cabeça e vão em direção a tela do notebook.
Ilustração publicada em 20 de julho de 2022 - Marta Mello

Meu filho mais velho nasceu no mesmo ano da entrevista de Bowie e, desde pequeno, foi treinado para servir ao grande alien através de joguinhos aparentemente inofensivos.

O Tamagotchi foi primeiro duende verde a atravessar o espelho e se infiltrar no cotidiano dos lares. Lançado no fim da década de 1990, o Tamagotchi é um bichinho de estimação eletrônico que demanda da criança todos os cuidados dispensados a um cachorro, com a diferença que ele muito pede e pouco dá.

Aos oito anos, meu primogênito trouxe um Gremlin desses para casa. Numa semana mais exigente de provas, o moleque descuidou do diabinho e, ao chegar da escola, ouviu o som da marcha fúnebre, vindo do quarto. Chocado, ele deu com o Tamagotchi decorado com cruzes nos olhos e duas asinhas de anjo nas costas.

"Ele mor... mor... morreu?!", perguntou o guri desesperado, e a mãe aqui correu para ressuscitar a desgraça, com a ponta de uma caneta esferográfica.

A família foi, então, convocada para ajudar a manter viva a aberração. Falhamos. Mais um descuido, outro óbito, e mais outro... No quarto passamento, largamos aquele inferno no limbo do fundo de uma gaveta e o trocamos por um buldogue francês. A lição, no entanto, estava dada, era adição total, ou morte.

Quando o meu caçula completou os mesmos oito anos, o Tamagotchi já havia evoluído para o "Pokémon Go", da Nintendo. Monstrinhos invisíveis aos olhos dos pais se espalharam pelas cidades, e a febre de caçar dragões foi propagada como antídoto milagroso para o sedentarismo dos nerds.

Gratos, os gamers inundariam as redes com relatos de aumento de atividade física, medido por aplicativos de GPS e de saúde. Obesos emagreceram, crianças pálidas pegaram sol e as ações da Nintendo explodiram no mercado.

Em agosto de 2016, uma turba de aficionados deu um nó no trânsito de Taipei, em Taiwan, ao afluir para um parque, onde um espécime único de Pokémon seria liberado. Foi a primeira de uma série de flashmobs promovidos pela Nintendo. Por trás do passatempo, escondia-se um experimento para mover multidões no mundo real, com implicações sociais, econômicas e políticas.

Para mais detalhes, assistam "Can't Get You Out Of My Head", de Adam Curtis, disponível no YouTube.
Em 6 de janeiro de 2021, uma horda de fanáticos de extrema direita, insuflada pelo ainda presidente Donald Trump, invadiu o Capitólio, com a intenção de impugnar as eleições americanas. Dentre todos os possessos envolvidos no ato, nenhum se destacava mais do que o ET Jake Angeli, com seus chifres de touro, a cara pintada e a bandeira dos Estados Unidos atada a uma lança.

Pokémon involuído raríssimo, Angeli atravessara os umbrais da deep web, para se carnificar na pele de QAnon Shaman, o xamã da QAnon.

A QAnon é como um jogo, uma rede autoalimentada de teorias conspiratórias e fake news lançadas por um misterioso Q, no canal 4chan da ala proibidona da internet. Jim Watkins, dono do 4chan, é um americano radicado nas Filipinas, também conhecido como o Rei do Porn, defensor da liberdade irrestrita de expressão.

A história dessa festa estranha com gente esquisita está narrada no documentário "Into the Storm", de Cullen Hoback, na HBO Max. Ele investigou as origens da QAnon, procurando identificar Q e seus aliados.

A primeira Qdrop foi publicada pouco depois de Trump soltar um enigmático "a calma antes da tempestade" durante uma entrevista coletiva, ao lado de militares da reserva. A tempestade, sabe-se hoje, era a tomada do Capitólio —um flashmob planejado ao longo de seu governo, para melar as eleições de 2020 em caso de derrota.

Contrários ao progressismo globalista, os QAnons se tornaram uma força política e foram encampados pelo GOP. Exterminadores do presente, eles pregam a prisão e execução dos pedófilos de Hollywood e dos canibais democratas, pelos crimes de tráfico de criancinhas e satanismo.

Por aqui, a campanha de difamação das urnas eletrônicas tem aprovação das Forças Armadas, e o Congresso já garantiu o estado de emergência para outubro. Aguardo apreensiva a chegada da tempestade, liderada pelo exército de QAnonGos tupiniquins.

Que Deus nos livre da abdução.

Erramos: o texto foi alterado

A invasão do Capitólio, em Washington, ocorreu em 6 de janeiro de 2021, não 2022, como afirmava versão anterior deste texto. A informação foi corrigida.

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