Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

'O Ovo da Serpente' dá voz aos agentes de Bolsonaro e do bolsonarismo

De Bia Kicis ao velho da Havan, de Paulo Guedes a Carluxo, livro retrata todos os personagens que se aliaram ao capitão

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O "O Ovo da Serpente", livro de Consuelo Dieguez sobre a ascensão do bolsonarismo, chega às livrarias no fim de agosto e é leitura obrigatória. Com atenção obsessiva pelo detalhe, Dieguez se atém à cadeia de fatos que levou Messias ao poder.

De Bia Kicis ao velho da Havan, de Paulo Guedes a Bebianno, de Adélio Bispo a Luis Stuhlberger, de Paulo Marinho a Carluxo, do general Heleno a Tereza Cristina, todos os personagens que perceberam, no capitão, a força aglutinadora capaz de encarnar a indignação com o PT, o ressentimento ultraliberal, a mágoa dos militares, o dogmatismo religioso, as tensões no campo e a moral conservadora, são descritos desde o primeiro momento de engajamento na campanha, até a chegada de Jair ao Planalto.

 Um ovo de serpente todo preto, na posição deitada, sobre um grande splash de preto e cinza
Ilustração publicada em 17 de agosto - Marta Mello

O bolsonarismo, queira ou não, com ou sem bots, é um movimento popular, que reflete os anseios de grande parte da sociedade. O bolsonarismo roubou da esquerda o direito exclusivo de falar em nome do povo e, hoje, organizado nas redes, alcançou enorme capilaridade e estratégia de ocupação das ruas.

O bolsonarismo empurrou para a oposição todo o campo laico progressista que, dividido em mil correntes, se digladia para atingir um consenso, enquanto assiste à extrema direita, aliada ao pragmatismo argentário do centrão, se organizar em bloco.

Sugiro à Companhia das Letras publicar uma caixa reunindo "O Ovo da Serpente" e "Bilhões e Lágrimas", livro anterior da autora, sobre as escolhas econômicas e políticas feitas pelo Brasil, no período de 2006 a 2013. Juntas, as duas obras apresentam a mais precisa análise jornalística da nossa história recente.

Há uma diferença marcante entre os dois livros. A economia é a régua e o compasso de "Bilhões e Lágrimas", enquanto os valores morais permeiam todos os capítulos de "O Ovo da Serpente".

Em 1992, James Carville, estrategista da campanha presidencial de Bill Clinton contra George H. W. Bush, cunhou a expressão "é a economia, idiota!", ao aconselhar seu candidato a concentrar as críticas ao opositor na recessão americana. E a economia se impôs como único fator relevante para o resultado das urnas.

A partir de 2013, no entanto, com o florescimento do extremismo nacionalista ultraconservador, os princípios morais da família tradicional e das crenças cristãs se transformaram num catalisador de votos. Líderes mundiais com tendência totalitária passaram a questionar os direitos universais que, aos olhos dos progressistas, pareciam assegurados pelo senso comum.

"Dois mil e dezoito foi a eleição do ressentimento contra os governos passados que defendiam os direitos da mulher, dos gays, dos negros. Um ressentimento que não era só dos ricos e da classe média. Era também dos pobres, que se indignavam, por exemplo, com o fato de sua filha ter virado lésbica 'por culpa da esquerda', ou de o filho ter sido morto pelo traficante na favela e ser defendido pelo 'pessoal de direitos humanos'", explica a doutora em ciências da comunicação Magali Cunha, em "O Ovo da Serpente".

O jogo sujo das fake news, as mamadeiras de piroca e as imagens distorcidas das passeatas do Ele Não influíram nas eleições, mas não só. O Brasil revelou ser um país mais conservador do que a elite intelectual e política supunha, o que desembocou numa aversão mútua inarredável.

Michelle brada que o bem enfrentará o mal no pleito de outubro e, pela sua fé arraigada, não creio tratar-se de retórica eleitoreira. Para os antiarmamentistas, a comunidade LGBTQIA+, as feministas, os acadêmicos, artistas, cientistas, ambientalistas, quilombolas e povos originários, o sentimento é o mesmo do dela. São visões de mundo tão díspares, que acabamos dominados pelo asco recíproco.

Para além de Jair, "O Ovo da Serpente" dá corpo e voz aos diversos setores que se aliaram ao bolsonarismo. O capítulo sobre os ruralistas, por exemplo, aborda a ofensa dos produtores agrícolas por terem sido colocados no mesmo saco dos grileiros; e o que trata da aliança com os evangélicos, menciona o preconceito.

Há tempos, circula nas redes bolsonaristas uma entrevista minha no Roda Viva, de 30 anos atrás. Nela, investida da petulância juvenil, afirmo não ter apreço por crentes. Hoje, não repetiria a frase, pois reconheço o trabalho das igrejas pentecostais e neopentecostais junto às comunidades carentes, embora não deixe de me preocupar com a ameaça ao Estado laico.

"O Ovo da Serpente" convida o leitor a refletir, cavando brechas para uma improvável trégua entre as atuais trincheiras. É um serviço e tanto nesse tempo aguerrido, que exige moderação por parte daqueles que não perderam a capacidade ou a vontade de dialogar.

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