Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

Teatro é a roda de samba dos ingleses, e Shakespeare, um Noel com Cartola

Geni das artes no Brasil, ele segue analógico e anacrônico, à mercê das pandemias e da boa vontade do público

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O teatro é a Geni das artes no Brasil. Temo que o leitor me vire as costas pela simples menção do termo. É, de fato, perigosíssimo ir ao teatro. O mais das vezes, o espectador é abatido pela vergonha alheia, o constrangimento e o enfado.

Como cria de coxia, no entanto, confesso que vi encenações extraordinárias, que me ficaram impressas para toda a eternidade: "Macunaíma", "Trate-me Leão", "Os Sertões" e "O Rei da Vela", "Seria Cômico Se Não Fosse Sério", com os meus pais; além de Spalding Gray, Bob Wilson e Tim Crouch, por aí. E sonho ver encenada "A Rainha Lira", do Roberto Schwarz, estupenda ópera bufa sobre a pátria amada.

Homem branco, meia-idade, grisalho, com a mão direita estendida, dizendo a frase escrita à mão na ilustração: "Ao peso destes tempos, temos que obedecer. Dizer o que devemos; não o que é bom dizer."
Publicada nesta quarta-feira, 3 de agosto de 2022 - Marta Mello

Hoje, em qualquer Casas Bahia, se compra parcelado um home theater para rodar o "Poderoso Chefão" quantas vezes der na telha. Mas a tecnologia para materializar Bibi e Paulo Autran em casa ainda está para ser inventada. O teatro segue analógico e anacrônico, à mercê das pandemias e da boa vontade do público.

Toco no tema porque muitos de meus colegas estão de volta à cena e porque estou em Londres, terra de Shakespeare. Vim acompanhar meu cônjuge, que terminou a segunda temporada do documentário da família Gil com show histórico no Barbican.

O teatro é a roda de samba dos ingleses, e Shakespeare, um misto de Noel Rosa com Cartola. Criancinhas do primário recitam de cor sonetos inteiros, o que facilita imensamente a carreira dos que se aventuram no palco. Para um brasileiro, encarar Shakespeare é subir o monte Everest sem ajuda de oxigênio.

A dificuldade começa na tradução. Algumas são fiéis à rima e à métrica, mas, de tão rebuscadas, mais parecem enigmas esotéricos. As do Millôr Fernandes são imbatíveis. O bruxo de Stratford-upon-Avon é o Mike Tyson da associação de ideias. É surra. Uma frase desencadeia na outra, na outra e, se o espectador perder a vírgula, lá se foi o parágrafo. Outro problema é a temida segunda pessoa do plural, o "vós", sempre embolorado no português tupiniquim.

Há duas décadas eu não pisava no Globe Theatre. Desta vez, fui com o filho mais velho, que nunca havia visto um "Rei Lear" e saiu doido com a economia da encenação.

Eu cresci durante a onda do teatro do diretor, quando a interpretação pessoal do gênio importava mais do que o texto. No caso do Globe, o palco elizabetano já é a invenção em si, projetado sobre a plateia, com o ator senhor absoluto da sala. A luz é a do sol, não há cortina, terceiro sinal nem batidas de Molière, exigindo silêncio solene para se cantar o fado.

O público é personagem, testemunha e juiz da ação. Os solilóquios se dirigem a quem está ali, presente, sem psicologismos ou vaidades de intérprete. Shakespeare é da praça pública, não do palco italiano.

Mas é preciso saber dizer. "Ninguém lê em voz alta aquilo que não entende", ensinava Bárbara Heliodora aos alunos. Há técnicas para isso, ciência, mas faltam escolas. No Brasil, aprende-se o ofício do ator na prática e sob a influência da corrente em voga. Meus pais foram formados no teatro da palavra, por diretores europeus do pós-Guerra. Eu sou cria do teatro experimental, do improviso e do corpo, e demorei milênios para aprender a destrinchar uma fala.

Assassinei Cordélia aos 18 anos, fiquei traumatizada e só fui reencontrar Shakespeare na menopausa, num curso ministrado por Yolanda Vazquez, da companhia fixa do Globe Theatre.

Tradicional, o Globe não ambiciona reinventar a pólvora. Vazquez propôs exercícios simples: ler em voz alta enquanto se caminha, mudando de direção a cada ponto e vírgula; e dizer a frase completando com "porque...", seguido do raciocínio anterior, de modo a fixar a cadeia de ideias. Também aprendemos a não cair no fim do verso, mantendo-o em suspenso, como música, ao término de cada linha, até concluir no ponto, que pode estar bem distante na estrofe.

Passamos às cenas em dupla, lendo-as de pé. Curtas, elas sempre promovem uma inversão de expectativa nos personagens, movendo a ação. Você nunca sai de cena como entrou. No curso, fui Hamlet por um dia, ao lado da Ofélia de Alice Wegmann. Jamais esqueci. A compreensão da fala a despertar o espírito e a carne.

Findo o "Lear", uma trama sobre a prepotência humana, a demência, a ganância e o amor entre pais e filhos, eu e meu rebento passeamos mudos pela noite londrina. O mundo é mesmo um palco onde os loucos guiam os cegos.

"Ao peso destes tempos./ Temos que obedecer./ Dizer o que devemos;/ Não o que é bom dizer,/ O mais velho sofreu mais;/ Nós jovens, garanto,/ Jamais veremos tanto,/ Nem viveremos tanto." "Rei Lear", ato cinco, cena três (tradução: Millôr Fernandes). Vá ao teatro e me chame.

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