Fernando Schüler

Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.

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Fernando Schüler

As lições do caso Aécio

Criminalizar o exercício da atividade parlamentar é cruzar uma linha tênue entre a esfera jurídica e política

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Era perfeitamente normal e previsível o recebimento da denúncia da Procuradoria-Geral da República contra o senador Aécio Neves. Coube ao ministro Luís Roberto Barroso, com a suave ironia que lhe é peculiar, dar o tom da decisão, sugerindo que negócios normais se fazem com transferências bancárias ou, por vezes, com o velho e bom cheque. Mas que era de fato esquisito alguém sair andando com malas de dinheiro por aí.

O senador argumenta que tudo aquilo foi um erro, desde a patética ideia do empréstimo até as bravatas e frases de mau gosto. Mas que não teria havido ilegalidade. A tese é intelectualmente instigante, e já parece antecipar sua linha de defesa. Ela diz basicamente o seguinte: houve uma transação privada entre entes privados, sem dinheiro público ou alguma transação pública específica.

Em algum mundo possível uma tese como esta teria alguma chance, mas suspeito que não no Brasil de hoje. Seu maior problema é produzir uma elementar abstração de contexto: não se tratava de uma simples relação entre sujeitos privados, mas entre um senador de conhecida influência política (que afirma, possivelmente blefando, que acabara de nomear o presidente da Vale) e um empresário envolvido até o pescoço com negócios de governo. No mundo real, são figuras públicas. É evidente que isto não esgota o problema. Ele apenas começou. O Supremo agiu com precisão cirúrgica ao aceitar a denúncia, e o senador terá todas as chances que nosso Estado de Direito oferece para sua defesa.

 
Situação inversa ocorre quanto à denúncia por obstrução da Justiça. O ministro Marco Aurélio Mello tinha razão quando propôs separar aquilo que pode ser entendido como um delito (dizer, por exemplo, que vai colocar delegados neste ou naquele processo), daquilo que é tão somente objeto de sua atividade parlamentar. A denúncia acusa o senador de trabalhar, no Congresso, pela aprovação de matérias como a anistia ao caixa dois e a lei contra o abuso de autoridade.
 

Neste ponto o tema se torna de fato complicado. Pode um parlamentar ser criminalizado pela defesa, ou suposta defesa, desta ou daquela matéria legislativa? Caso positivo, todos os parlamentares que defenderam alguma uma matéria que possa ser interpretada como prejudicial às investigações ou à Operação Lava Jato devem ser também criminalizados? E em que consistiriam as provas deste tipo de delito? Matérias de jornal, telefonemas, discursos no Congresso?

A questão incômoda, aqui, é saber se interessa a uma boa democracia produzir parlamentares com medo de defender ideias e projetos que possam ser vistos como um erro (ou pior: um crime) sob o ponto de vista de alguma instituição de tutela. Por mais respeitável, aos olhos da opinião pública, que seja esta instituição.

Penso que há um problema aí, a ser discutido com a serenidade que parece andar escassa neste país nervoso. Criminalizar o exercício da atividade parlamentar é cruzar uma linha por vezes tênue, mas vital, entre a esfera jurídica e política da vida republicana. Se o senador Aécio, ou qualquer outro, propôs ou defendeu alguma legislação equivocada, sob este ou aquele ponto de vista, ele deve ser julgado pelos seus eleitores, não pelos orgãos de Justiça.

Certas confusões republicanas são recorrentes em nossa tradição política. A mais recente é a ideia de que alguma inteligência saneadora, vinda do mundo jurídico (para alguns, mais toscos, deveria vir dos quartéis), irá limpar a nossa democracia dos maus políticos e seus equívocos. Isso tudo é muito vago e, em boa medida, perigoso. Uma democracia se faz com regras claras e estáveis. E com a sabedoria de distinguir o que cabe à justiça e o que cabe à política e aos eleitores, gente adulta que deve assumir responsabilidade pelas suas escolhas.

É evidente que o sistema político tem uma boa dose de culpa nisso tudo. Em uma democracia madura, uma situação como a vivida por Aécio já seria suficiente para o fim de sua carreira política. Um professor inglês, ainda esta semana, me dizia achar surpreendente que um parlamentar flagrado transitando com malas de dinheiro pudesse seguir naturalmente na vida pública. Fiquei pensando se ele não estava exagerando. Talvez em um modelo de voto distrital isto seja realmente mais difícil, dado que toda eleição é majoritária. Ou quem sabe os eleitores ingleses são mais exigentes que os nossos.

O fato é que há algo a aprender com isto tudo. O PSDB age bem em não sustentar politicamente a posição de Aécio, e Alckmin dá um bom sinal dizendo simplesmente que a lei é para todos. Pior seria assistir a deputados tucanos pedindo ao presidente da Câmara para introduzir a palavra “Aécio” no meio de seus nomes. Ao menos disso nos livramos, mas por certo ainda há um longo caminho pela frente.  

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