Fernando Schüler

Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Fernando Schüler

É bom para a democracia que a política defina relações pessoais e hábitos de consumo?

Observamos a perda da empatia, da capacidade de levar à frente projetos comuns com quem se discorda

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Quase todo mundo tem uma história pra contar sobre desavenças que surgiram, nos últimos anos, em função da brigalhada política. Tempos atrás vi um tuíte de uma filha dizendo que o pai era um homem bom e que o “perdoava”, mesmo tendo ele votado no candidato que ela detestava.

O filósofo Robert Talisse comenta que encontrou mais de 40 milhões de entradas digitais com instruções sobre como escapar dos temas politicamente delicados e sobreviver aos encontros familiares no Dia de Ação de Graças americano.

Achou curioso não ter encontrado nenhuma vez a sugestão simples de que talvez a própria celebração entre as pessoas fosse mais importante do que as crenças políticas de cada um.

A partir desse incômodo ele escreveu “Overdoing Democracy”, um livro que faria bem ser lido por aqui. O ponto de Talisse é o que ele chama de “saturação política da vida social”. A ideia obsessiva de que “tudo é política” e é ela que deve pautar nossas relações pessoais, hábitos de consumo e juízos sobre qualquer coisa.

Lendo o livro me veio à mente o tema das identidades. A percepção de que, para além da retórica habitual, não é o gênero ou cor da pele que define o respeito, em regra, no mundo público, mas a opção política.

Neste episódio do ex-ministro Decotelli, li uma crítica dizendo que ele talvez até merecesse o tombo que levou não pelas omissões no currículo, mas porque era evangélico e renegava a religiosidade de seus antepassados. E era bolsonarista.

Seu problema era “político”. Escolheu errado. O autor destilava seu ódio com uma estranha pátina de virtude autoconcedida. Estranha, mas crível. Sua tribo iria entender do que ele estava falando. E isso bastava.

A saturação política invade também os espaços de consumo. Dias atrás observei gente bacana distribuindo listas de empresas a serem boicotadas, dado que seus proprietários manifestavam esta ou aquela posição política. Comer um cachorro-quente se tornava um gesto político. A estratégia impor um custo, fazer “calar a boca” de fato parecia funcionar.

Para o fanático político há sempre algo mais em jogo do que uma escolha eleitoral. Este é o ponto de Talisse. Se tudo é política, cada gesto remete a uma “totalidade”, sacou? O gosto por um desenho, o trecho de um filme, tudo pode ser imensamente grave. Não dá pra deixar passar, não é mesmo?

Mesmo o passado anda saturado de política, como mostra a atual onda iconoclasta. Isso não é novo, mas agora ganhou escala. O sujeito cruzou anos pela estátua do Borba Gato, em Santo Amaro, mas subitamente passa a enxergá-la como um ator político. Não é mais a imagem de um tempo que se foi. Ela se põe em movimento, incomoda, agride. E também precisa calar a sua boca.

Qual seria exatamente o problema com a saturação política? Alguns diriam que é a chatice. Tendo a concordar com isso quando dou uma olhada nas discussões de alguns grupos de WhatsApp nos quais (não me perguntem por que) estou incluído.

Mas a coisa vai muito além. Há bens valiosos que se perdem nesse caminho. O respeito humano é um deles (o respeito às escolhas políticas de Decotelli é só um exemplo). Há a perda da empatia, da capacidade de levar à frente projetos comuns com quem se discorda.

Há bens essenciais à democracia que a obsessão política leva com a água do banho. A capacidade de agir com imparcialidade e respeitar regras que não deveriam depender da lealdade política. A liberdade de expressão é um bom exemplo, mas está longe de ser o único.

O problema é a solução proposta por Talisse. Ele fala em cultivar a humildade intelectual e virtudes como a “amizade cívica”, capaz de cruzar fronteiras políticas. Sugere que cada um veja a si como vê a seus inimigos. Como “irracionais, imunes a evidências e assim por diante”.

A tese é boa. A democracia, para funcionar bem, precisa preservar espaços protegidos da própria política. Há um longo aprendizado a ser feito aí, visto que por ora parecemos caminhar alegres e obsessivamente na direção oposta.​

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.