Flávia Boggio

Roteirista. Escreve para programas e séries da Rede Globo.

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Flávia Boggio
Descrição de chapéu

Gangue Tarantella

Formamos uma milícia infantil no coração da zona sul de SP

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Era verão de 1989. Época de ouro da pedagogia irresponsável. Quando crianças viviam livres, viajando no chiqueirinho do carro, fumando seus cigarrinhos de chocolate e tentando não morrer com balas Soft.

Eu morava em um prédio de classe média com uma taxa alta de natalidade. A área comum era dominada por dezenas de crianças que viviam numa microssociedade independente. Uma distopia infantil de pais ausentes. Uma versão predial do livro “O Senhor das Moscas”.

Naquele verão, muitos pais acharam prudente presentear seus filhos com um brinquedo que refrescava e divertia ao mesmo tempo: uma metralhadora de água, na época conhecida como metralhágua.

Ilustração
Galvão Bertazzi

Em tempos de uso livre de pistolas de espoleta e fogos Caramuru, uma arma que atira água, mesmo em forma de metralhadora, não parecia muito empolgante. Mas, se a vida dá a uma criança um limão, ela não faz uma limonada —faz uma guerra de limão.

Tudo mudou quando um amigo roubou uma caixa de molho de tomate da cozinha de casa. Aquele molho poderia transformar nossas metralhadoras de água, tão entediantes, em máquinas de amolação e vandalismo. Era o nascimento da gangue Tarantella.

Todo dia, os cinco integrantes da gangue se reuniam dentro de uma moita, o QG Tarantella, para discutir estratégias. Local de ataque? Entrada do prédio. Hora? Depois da lição de casa. Alvos? Crianças, adultos e até mesmo veículos entrando na garagem.

A ideia de jerico fez tanto sucesso que a gangue aumentou. Passamos a fabricar nossos próprios armamentos. Transformamos bexigas em granadas e embalagens em coquetéis molotov de Tarantella. Formamos uma milícia infantil no coração da zona sul de São Paulo e ninguém se importava. Eram os anos 1980.

Um certo dia, o zelador recolheu todas as metralháguas e as triturou com uma serra Makita. Era o fim da gangue Tarantella. Voltamos aos cigarrinhos de chocolate, balas Soft e pornochanchadas na TV Record.

Recentemente, o presidente assinou um decreto que flexibiliza o porte de armas a 19 milhões de brasileiros, em 20 categorias. O artigo também facilita que crianças e adolescentes possam ser treinados para o uso de armas letais. No governo Bolsonaro, a gangue Tarantella não precisaria de molho de tomate para brincar

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