Flávia Boggio

Roteirista. Escreve para programas e séries da Rede Globo.

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Flávia Boggio
Descrição de chapéu

Não troco por nada o cheiro de orvalho e do cocô que não limpei

Horta precisa de adubo e cachorro gosta de rolar no adubo, ou seja, não é possível coexistirem

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Acordo. Abro a porta para os cachorros. Passo um café. Pego o jornal. Saio de casa e me sento na primeira faixa de sol que aparece no chão. Nunca fui uma pessoa de ter rituais. Mas passei a ter quando ganhei um quintal.

A maior parte da vida morei em um apartamento pequeno. Meus pais, quatro filhas, um cachorro e um jabuti éramos a prova de que muitos corpos poderiam ocupar um mesmo espaço. Disputávamos uma única sacadinha para pegar um pouco de sol.

Ilustração de uma mulher com cabelos castanhos preso em um coque alto vestindo um roupão rosa. Ela está está com expressão séria e olheiras, tem um jornal enrolado embaixo de um braço e segura uma caneca com o outro. Ao redor, há uma espreguiçadeira branca e muitas plantas. O sol está sorrindo e um raio de sol está direcionado bem sob a pessoa. No fundo, há um muro bege e depois muitos prédios cinzas, algumas nuvens brancas e um céu azul.
Publicada nesta quinta-feira, 27 de maio de 2021 - Galvão Bertazzi/Folhapress

Quarenta e dois anos e muitos apartamentos depois, encontrei uma placa “aluga-se” na zona oeste de São Paulo.

A fachada simples escondia um segredo. Quando entrei, me senti em uma versão predial de Dorothy de “O Mágico de Oz” quando, depois do ciclone, colocou o pé para fora. Era um gramado cheio de plantas, uma árvore frutífera e um pergolado com tumbérgias. Na hora, eu sabia, aquele quintal seria meu.

Me mudei em poucas semanas e espalhei espreguiçadeiras. Construí uma horta com tomates, batatas e alface.

Adotei dois cachorros. Convoquei amigos para um almoço inaugural no meu jardim.

Me senti a própria Brigitte Bardot falando “meu jardim”. Mal sabia que a beleza de um quintal é proporcional ao trabalho que dá.

Para começar, horta e cachorro são duas coisas que não coexistem. Horta precisa de adubo. Cachorro gosta de rolar no adubo. Foi uma ideia de merda.

Amigos e quintal combinam. Até demais. A ponto de eles dançarem na grama até fazer buraco. Pisarem em cada cocô de cachorro e espalhar pela casa. Continuarem madrugada adentro e eu ter que sair do meu próprio evento à francesa.

Quando essa ex-criança predial que vos fala decidiu ter seu quintal, não imaginava que, se não cuidasse, ele seria engolido pela natureza.

Grama cresce como unha, trepadeiras são agressivas, cachorros fazem cocô e comem bebês lagartixa —o que acaba com o dia—, taturanas são kamikazes e gostam de pular na cabeça de desprevenidos.

Mas aquela luz da manhã só no cantinho. Eu sentada com os cachorros e meu café.

O cheiro de orvalho na grama —e de cocô que eu não limpei— não troco por nada.

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