Flávia Boggio

Roteirista. Escreve para programas e séries da Rede Globo.

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Flávia Boggio
Descrição de chapéu Rússia

Guerra na Ucrânia é um prato cheio para o sommelier de tristeza

Ele passa o dia na internet esperando alguém se lamentar para atacar com a frase 'tem guerra no mundo todo'

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Há aproximadamente 80 mil anos, em alguma fogueira nas montanhas da Etiópia, um 
nômade chorava ao saber que moradores da aldeia vizinha foram devorados por tigres dentes-de-sabre.

Ao ver o lamento do nômade, um parente comentou com desdém: "Quando a aldeia do sul foi pisoteada por mamutes, você não falou nada".

Foi o surgimento do primeiro exemplar de uma nova subespécie de Homo sapiens: o "sommelier de tristeza". Assim como o sommelier de vinho, o sommelier da tristeza é chato. E sente prazer em diminuir o sentimento alheio como se degustasse uma sidra Cereser.

Ilustração mostra homem sentado em cima de cabeça de uma mulher. O ambiente em volta é cinza, nublado com chuva, e há uma nuvem em volta do rosto dele.
Ilustração de Galvão Bertazzo para coluna de Flávia Boggio - Galvão Bertazzi/Folhapress

Também conhecido como "sommelier do luto", tem 
sempre uma resposta pronta para qualquer lamúria ou 
insatisfação, para deixar claro que quem sofre é uma pessoa pequena e mesquinha.

Muitas vezes, ele ataca com ondas de energia positiva, com conselhos como "a vida é boa" ou "olha que dia bonito". Ou com laudos médicos como 
"pelo menos você tem saúde", como se a saúde mental não fizesse parte do pacote.

Há também o sommelier de tristeza preguiçoso, que solta um "não fica triste", porque a pessoa estava só esperando esse conselho para ficar feliz.

Já o sommelier egocêntrico não pode ver uma mãe doente, que responde com um "pior é a minha, que teve o pé amputado". Se você tiver enxaqueca, ele vai replicar: "E meu primo, que tem um gêmeo siamês crescendo dentro do cérebro?".

A chegada da internet funcionou como um passaporte da alegria —ou da tristeza— para esses sommeliers, que passaram a infernizar a dor de qualquer desconhecido 
das redes sociais. Alguém se choca com assassinato? "Todo dia matam e ninguém fala nada." Uma celebridade morre? "Quanto fã apareceu agora, né?" Aconteceu um atentado? "Quando tem chacina em outros 
lugares ninguém fala nada."

A crise na Ucrânia serviu como um prato cheio —ou meio vazio— para os sommeliers da tristeza, que passam o dia na internet esperando alguém se lamentar para atacar com "tem guerra no mundo todo e você não se abala", "mas a Otan não é santa". "Tem gente morrendo em (complete com uma região) e ninguém faz nada."

O ser humano é complexo o suficiente para sofrer por diversas causas e chorar por diferentes guerras. E lutar por mudanças. Bem mais produtivo do que perder tempo 
julgando a dor dos outros.

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