Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

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Flavia Lima

A Previdência e o suicídio

Convém presumir que o leitor desconheça fatos precedentes a uma notícia

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Nesta semana, a Folha noticiou que o regime de aposentadoria brasileiro leva a mais suicídios do que o chileno. A frase foi dita pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.

"Ah, mas no sistema chileno todo o mundo se suicida... é mentira. Suicida-se mais no Brasil do que lá. O sistema de repartição causa mais suicídio do que o sistema de capitalização. Suicida-se mais aqui do que lá. E muito mais em Cuba, mais do que aqui e mais do que lá", afirmou o ministro em Brasília, segundo texto publicado em Mercado na quinta-feira (23).

Carvall

Os leitores não tiveram acesso a outras informações além do que foi dito pelo ministro.

Não puderam entender se a frase fazia sentido e, se fizesse, quais as implicações disso, nem o que Cuba tem a ver com a história.

Lendo o texto, o leitor fica sem saber que Guedes responde a críticas que vêm sendo feitas à tentativa liderada por ele de criar um novo regime previdenciário --de contas individuais, ou capitalização.

Um dos argumentos usados pelos críticos é dizer que as aposentadorias no Brasil acabarão como as chilenas --muitas naquele país ficam abaixo do salário mínimo-- e que o efeito disso vai ser elevar aqui, como lá, a taxa de suicídio entre os mais velhos.

Um dos primeiros a levantar a questão foi Guilherme Boulos, ex-candidato à Presidência pelo PSOL. Em fevereiro, Boulos tuitou que o Chile "ostenta hoje o título de país com mais suicídios de idosos acima de 80 anos".

Desde a década de 1980, a aposentadoria dos chilenos é formada em contas individuais, nas quais cada um deposita um percentual do salário.

Por lá, uma massa de idosos acabou se aposentando com menos do que o salário mínimo, o que levou a uma revisão das regras gestadas durante a ditadura de Pinochet.

O Brasil, por sua vez, tem um regime de aposentadoria em que as contribuições são destinadas para um bolo comum, de modo que os mais jovens asseguram a aposentaria dos mais velhos --é o sistema de repartição.

Aqui, o salário mínimo é o piso da Previdência.

E o suicídio? A taxa de suicídio entre pessoas acima de 70 anos era de 9,8 por 100 mil no Brasil em 2012. No Chile chegava a 16,8 por 100 mil, segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde).

O Ministério da Saúde informa uma média ainda menor no Brasil, de 8,9 suicídios por 100 mil entre idosos com mais de 70 anos entre 2011 e 2016.

Considerando toda a população do país, não só os idosos, em 2016 a taxa de suicídios era de 6,5 por 100 mil no Brasil (5,8 de acordo com o Ministério da Saúde), e de 10,6 por 100 mil no Chile.

Se ao leitor fosse permitido conhecer esses números, saberia que idosos brasileiros não se matam mais do que os chilenos.

Levada a apuração adiante, o leitor também saberia que é arriscado estabelecer uma relação causal entre sistemas de aposentadoria e suicídio.

No Chile, há casos noticiados de idosos com dificuldades financeiras que se mataram. Mas as causas dos suicídios podem ser muitas.

Segundo o Ministério da Saúde, nenhum fator de risco para o suicídio pode ser considerado de forma isolada.

Diz o manual da Folha que convém presumir que o leitor desconheça fatos precedentes relacionados a uma notícia que se divulga. A falta de tempo do repórter --ou a falta de repórteres-- não pode punir o leitor.

A assessoria do ministro disse que a fala dele sobre suicídios não foi uma tentativa de vender o regime de capitalização, mas uma forma de rebater os ataques que a proposta vem sofrendo.

Boulos disse por meio de sua assessoria que exagerou ao dizer que a taxa de suicídio chilena entres idosos é a maior do mundo, mas reafirmou que há estudos que apontam a relação com a Previdência.

Já o INE, o instituto de estatística do Chile, afirmou que não tem dados que apontem relação entre regime de aposentadoria e suicídio e solicitou na sexta-feira (24) à noite que novo pedido fosse feito ao Ministério da Previdência --o que demonstra os percalços em relação ao tempo da apuração jornalística.

E Cuba, mencionada pelo ministro na comparação com o Brasil e o Chile? Além do forte componente ideológico, Cuba entrou na história porque tem uma taxa de suicídio entre os mais velhos que é mais do que o dobro da chilena, de 36,1 por 100 mil.

Mas o Uruguai também tem uma taxa alta (34,4), e lá o regime é uma mistura de repartição e capitalização. Mais uma prova de que, olhando só para esses números, não é possível estabelecer a relação.

De qualquer modo, é importante que o risco de pauperização dos mais velhos faça parte do debate. O jornal pode ajudar o leitor a distinguir os argumentos relevantes para isso.

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