Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

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Flavia Lima

Um soco na notícia

Preocupa que os ânimos se exaltem e se perca a referência do que é jornalismo

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Nesta semana, numa rádio, o jornalista fundador do The Intercept, Glenn Greenwald, foi agredido pelo também jornalista Augusto Nunes.

O encontro ocorreu no Pânico, da Jovem Pan, e não durou muito. Em pouco mais de quatro minutos de programa, Nunes deu um soco em Glenn.

O episódio não é bom para o jornalismo e reflete um ambiente radicalizado. É incomum ver um colega de profissão partindo para as vias de fato.

Ilustração mostrando boxeador com uma terceira luva no lugar da cabeça
Carvall

Num cenário político conflagrado, alguns profissionais e veículos de comunicação abusam do insulto em nome de assumir um lado no enfrentamento— o que acaba por corroer a atuação jornalística.

É preciso cuidado para falar de polarização nesse caso. É verdade que ambos deixam claras suas posições: Glenn é progressista, de esquerda, e Nunes está à direita, no lado conservador do espectro político.

Embora o pano de fundo seja esse, ninguém no programa discutia temas como o uso de material de origem ilegal para produzir reportagens—o The Intercept, junto com veículos como a Folha, tem publicado uma série de reportagens com base em conversas vazadas entre procuradores da Lava Jato e o então juiz Sergio Moro.

Nunes recusa o valor jornalístico do material produzido a partir das conversas vazadas, mas, no lugar de discutir a questão, tem preferido apelar para ofensas pessoais.

"O Glenn Greenwald passa o dia tendo chiliques no Twitter ou trabalhando como receptador de mensagens roubadas. Esse David [Miranda, marido de Glenn e deputado pelo PSOL] fica em Brasília ou lidando com rachadinhas, essa é a suspeita aí. Quem é que cuida das crianças que eles adotaram? Isso aí o juizado de menores deveria investigar", disse Nunes, em agosto, em seu programa na própria Jovem Pan.

No encontro de quinta (7), Glenn diz que não havia sido informado de que Nunes estaria na bancada e, ao vê-lo, trouxe o episódio dos filhos à tona.

Nunes negou que disse o que disse e afirmou que o jornalista não tinha português suficiente para identificar "ironias ou um ataque bem-humorado" —subterfúgio típico de quem recorre a preconceitos.

Foi aí que Nunes foi chamado de covarde por seis vezes e reagiu de modo violento.

Glenn foi ao programa a convite da rádio e não poderia ter levado um soco de um profissional da casa.

Assim como outros especialistas, é esperado que o jornalista tenha preparo e aja dentro dos limites da educação e do bom senso. O entrevistado até pode perder a tranquilidade. O repórter não.

 

Glenn já chamou colegas de corruptos, o que não faz parte das boas práticas. Nunca chegou perto da agressão física. 

No caso da Jovem Pan, a rádio tem o direito de conduzir os seus programas da forma que achar conveniente, mas o estímulo ao bate-boca não faz dela a arena mais apropriada ao debate. Mas traz audiência.

Após o pugilato, Glenn perguntou ao apresentador se julgava o ato justificável.

"Lógico que não", disse Emílio Surita para, logo em seguida, justificar a situação: "Você chamou o cara de covarde e ele perdeu as estribeiras", disse. "Não vou deixar você sem o microfone falando: 'Ai eu fui na Jovem Pan, fui agredido'. Por cima de mim, não vem com essa história de mi-mi-mi".

Para completar, a Folha deu título impreciso ao imbróglio, ao dizer que jornalistas "trocaram socos em programa". Acertadamente, mudou para "Jornalista Augusto Nunes agride Glenn Greenwald, que revida". 

As redes sociais ferveram. Nunes disse lamentar o acontecido. A rádio pediu desculpas e disse que repudia esse tipo de comportamento.

É preocupante que os ânimos estejam tão exaltados a ponto de se perder a referência do que é jornalismo como um exercício profissional.

O episódio joga combustível no ódio disseminado, encorajando esse tipo de conduta.

É curioso que, antes do soco, Nunes tenha dito que a queixa de Glenn era a prova de que o país criara o "faroeste à brasileira". "Quem tem que se explicar é quem comete crimes".

Pelo que se viu, o bangue-bangue não partiu de Glenn e, pelo que se sabe, ele não cometeu crime algum.

Tentar desqualificar a família que construiu não é jornalismo e só alimenta a intolerância.

Melhor fez Tucker Carlson, âncora da conservadora rede de tevê americana Fox News.

Carlson já entrevistou Glenn, com quem tem fortes discordâncias. No fim de julho, porém, atento a ameaças de processo contra Glenn em razão da Vaza Jato, defendeu o trabalho do jornalista em nome da liberdade de imprensa.

"A política está polarizada nos Estados Unidos e, aparentemente, também no Brasil. Mas o meio apropriado de resolver isso é o debate", disse.

A fala diz muito sobre a falta de compreensão de parte da imprensa brasileira sobre o seu papel. E é mais atual do que nunca num tempo em que Bolsonaro é o presidente da República e o ex-presidente Lula acaba de ser solto.

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