Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

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Flavia Lima

Afinal de contas, tem graça?

Não é possível dizer quem vai poder exercer o humor sobre quem ou o quê

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"Gregorio Duvivier ultrapassou todos os limites do desrespeito no artigo de hoje. Um lixo que ofende milhares de leitores. A liberdade de expressão implica, também, tratar com respeito a liberdade de crença de cada um. Nunca mais voltarei a comprar a Folha."

A dura mensagem que recebi resume como se sentiram alguns leitores em relação à coluna de Gregorio Duvivier publicada na Folha na quarta (11).

O texto do humorista ("Desculpem meu aramaico") respondia às manifestações críticas ao especial de Natal do coletivo Porta dos Fundos, considerado ofensivo por alguns.

Apoiado em uma parede, um cartaz cheio de emojis de carinhas amarelas
Carvall

A trama, exibida pela Netflix, é ambientada na festa de aniversário surpresa de 30 anos de Jesus Cristo, momento em que há duas grandes revelações: Jesus é filho de Deus, não de José, e se rendeu às tentações da carne a partir de uma perspectiva homossexual.

Em resposta a pedidos de retirada do ar do episódio, Duvivier encarna mais uma vez o filho de Deus para dizer aos críticos que Jesus é da galhofa.

Além de se sentirem ofendidos, alguns leitores chegaram a pedir que o jornal retirasse a coluna do site. 
Há limite para o humor? Sentir-se ofendido pode ser considerado um limite seguro?

O tema não é simples. O argumento de que a liberdade de expressão implica, também, tratar com respeito a liberdade de crença de cada um é sólido, mas largo o bastante para, no extremo, interditar o humor.

Quem vai dizer o que é desrespeito? Nesse sentido, o documentário "O riso dos outros", de Pedro Arantes, ajuda a pensar a questão.

A obra reveza depoimentos de humoristas e trechos de suas apresentações. Para alguns desses comediantes, o humor, em resumo, dialogaria com os "pré-conceitos"da sociedade.

A tarefa de fazer rir vai das piadas que lidam com os estereótipos de sempre, servindo, assim, para reforçar visões há muito compartilhadas, à transgressão de ridicularizar quem está em posição de poder.

De certa forma, assim pode ser lida a proposta do Porta dos Fundos. Partiu de uma figura mítica, símbolo de um poder estabelecido, para partilhar com o espectador algumas das mazelas da sociedade. 

Ao mostrar na tela a família que finge não entender quem é o "amigo" do filho, expôs, fora dela, a homofobia renitente. 

Houve até quem dissesse que mostrar um Jesus gay coloca as pessoas umas contra as outras—um batido artifício para não encarar o fato de que é a homofobia, não o humor, que cumpre esse papel.

Duvivier diz que a acusação de que o especial de Natal é ofensivo por retratar Jesus gay é, por si só, homofóbica. Quanto aos limites da liberdade de expressão, diz que, se o limite é o sagrado dos outros, vai ser impossível delimitar esse sagrado sem ser etnocêntrico ou francamente racista.

"Tudo é sagrado pra alguém", diz ele. "Minha coluna e o nosso especial são profundamente cristãos, pois retratam um Jesus de amor, como na Bíblia", diz.

Assisti ao especial. Ele fere sensibilidades? Certamente.

A questão é entender que o humor sempre carrega uma dose de crueldade, logo terá como resultado alguém ofendido. Sendo assim, seu limite não pode ser a ofensa e a resposta a ele não pode ser a censura.

O debate é um bom instrumento para dar voz aos atingidos, ainda que alguns artistas se sintam perseguidos porque hoje em dia "não é possível fazer graça com mais nada".

Talvez essa perplexidade tenha outra origem. A tentativa de fazer graça com os de sempre (o preto, o gordo, a bicha, a mulher) continua sendo livre. A novidade são as reações a isso.

Não gostar de algo e ir para o debate é legítimo. Tentar calar alguém--ou excluir um texto considerado ofensivo--não é.

Uma boa baliza para o que pode ser feito pode ser a violação da lei. Vinicius Mota, Secretário de Redação, diz que "a Folha não interfere na livre manifestação de autores de textos de opinião, a não ser em caso de cometimento de crime".

Mota diz também que a coluna soou ofensiva para uma parcela dos leitores, mas o modo de o jornal lidar com esse fato é publicar reações críticas ao texto do colunista, como ocorreu no Painel do Leitor da edição de quinta-feira (12).

Não é a primeira vez que o leitor se pronuncia sobre o que considera ou não engraçado. Os quadrinhos vez ou outra recebem duras críticas de leitores que acham que as tirinhas viraram "indecência". O curioso é que as reclamações são endereçadas às tirinhas de Estela May e Fabiane Langona.

 Pretendo voltar ao assunto, mas suspeito que o fato de as duas serem mulheres—jovens e desbocadas--explicaria muito desse desconforto.

 

O discurso humorístico não é neutro e achar ou não graça de uma piada diz muito sobre quem somos.

Em nome da pluralidade e da liberdade de expressão, porém, não é possível estabelecer quem vai poder exercer o humor sobre quem ou o quê. Um excelente castigo para o humorista é não ser engraçado.

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