Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

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Flavia Lima

'Fake science' ou fantasia do real

A lição que a pandemia nos dá é que a verdade não pode ser tratada como opção

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"Duas coisas difíceis hoje em dia sobre o novo coronavírus: escapar de fake news e encontrar bom senso”, escreveu um leitor na quinta-feira (12), mesmo dia em que um áudio compartilhado por aplicativos de mensagens desenhava um cenário apreensivo para a disseminação do novo vírus no país.

Nele, o médico cardiologista Fábio Jatene, do Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas, descrevia previsões de colegas sobre um grande aumento do número de casos da doença nos próximos meses, com menos leitos de UTI do que o necessário para acomodar os doentes.

Ilustração Carvall para coluna da ombudsman de 15 de março. Há uma faca que rasga um fundo estampado com imagens do novo coronavírus e de onde saem as cores verde e amarelo.
Carvall

Um dia depois de a OMS (Organização Mundial da Saúde) declarar que, por ter atingido escala mundial, vivemos uma pandemia do vírus, imaginei que o áudio pudesse ser falso, sobretudo pela confusão que se instalou nas redes sociais em torno do tema e pela predisposição das pessoas em repassar qualquer coisa sem checar.

Era verdadeiro, como indicado pelo próprio médico aos jornais, entre os quais a Folha.

Sabe-se lá por quais motivos, um site com aparência muito similar à das agências de checagem decidiu classificar o áudio como “fake”.

O site ainda inseria um elemento conspiratório na falsa checagem ao dizer que, “mesmo que o áudio fosse real, o hospital não confirmaria”, e encerrava o texto lavando as próprias mãos (“quem tiver curiosidade e comparar a voz do áudio com esta entrevista poderá tirar suas próprias conclusões”).

O áudio verdadeiro bombou nos aplicativos de mensagens, mas teve baixa propagação nas redes sociais—foram 1.104 posts no Twitter. Olhando o Google, porém, ele alcançou 24 dos 26 estados e Distrito Federal, segundo a empresa de análise de dados Bites.

Quanto ao site que classificava o conteúdo como falso, saiu do ar um tempo depois—não sem antes ter deixado um rastro de desinformação.

Tentar disseminar conteúdo falso como se verdadeiro fosse é algo com que, infelizmente, nos acostumamos a lidar. Já cravar como mentira o que é verdadeiro não deixa de ser uma espécie de inovação.

O novo é que o verdadeiro se tornou falso.

Outra novidade tem sido a quantidade avassaladora de arquivos falsos em PDF (um formato para apresentar documentos eletrônicos), enviados por aplicativos de mensagens.

Como se trata de uma doença, a versão em PDF confere ao conteúdo falso um ar de estudo. Em tempos de coronavírus, são as fake news substituindo o formato jornalístico pelo formato científico: “fake science”, digamos assim.

Nesse campo, chamou a atenção outro conteúdo, este compartilhado sobretudo pela esquerda.

Segundo a Bites, a (des)informação de que Cuba teria fabricado uma vacina contra a doença produziu, só na quinta-feira, 69.573 tuítes, mesmo sem merecer uma linha no Granma, o jornal cubano.

O que não é novo é a cobertura jornalística feita sobre as grandes epidemias, sempre sujeita a resvalar no sensacionalismo.

Nesse caso, o dever de informar estabelece um estado de tensão permanente com o risco de gerar pânico, num equilíbrio difícil, mas que não deve ser menosprezado pelos produtores de notícia.

Segundo especialistas, a abordagem das crises sanitárias requer prudência porque envolve prescrição de comportamentos, destinação de recursos e até mesmo poder de polícia, como a restrição de circulação de pessoas.

O pânico é alimentado sobretudo quando se compromete a condição do Ministério da Saúde como líder da resposta ao vírus (em abordagens como “a China fez certo, o Brasil errado”), com a difusão do alarmismo (“o SUS não vai dar conta, é melhor pensar em outra coisa”) ou com previsões matemáticas feitas sem observação crítica ou ponderação.

E, num cenário de descontrole, fica ainda mais fácil proliferar as fake news.

Alguns dias depois de o presidente Jair Bolsonaro tê-lo descrito como “uma fantasia”, o coronavírus tem chacoalhado o país. É grande a busca por informação, como mostrava o site da Folha na mesma quinta-feira à tarde.

Das dez reportagens mais lidas, nove tratavam de coronavírus. Até a matéria sobre o Big Brother Brasil dizia que o programa não teria plateia devido à Covid 19.

Em momentos como este, o senso crítico é a arma para lidar com qualquer conteúdo, seja ele falso ou verdadeiro.

As redes sociais romperam a necessidade de qualquer legitimidade para que algo alcance repercussão.

Talvez a lição que o episódio nos dê seja que essa falta de legitimidade em questões de saúde pública pode ter um custo tão alto quanto a vida.

E que a verdade, mais do que nunca, não pode ser tratada como uma opção. Para o pesadelo dos terraplanistas, precisamos da ciência para salvar vidas, inclusive as deles.

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