Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

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Flavia Lima

A favor ou contra a cloroquina?

O falso debate em torno da substância precisa ser desmistificado

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Texto recente publicado pelo NiemanLab, o laborário de jornalismo da Universidade Harvard, discute o papel das Redações em desmascarar conteúdo falso sobre a Covid-19.

No Reino Unido, torres de telefonia celular foram atacadas por gente que acredita que as redes de conexão 5G espalham o coronavírus.

ilustração de homem sentado em comprimido
Folhapress

Para essas pessoas, existiria uma ligação entre Wuhan, epicentro da doença na China e cidade altamente conectada, e a disseminação do vírus por essas torres —ideia impulsionada por famosos nas redes sociais.

A tarefa de lidar com conteúdo falso não é simples. Segundo o texto do NiemanLab, desmascarar um boato muito cedo pode dar a ele oxigênio, mas fazer isso muito depois pode ser tarde demais.

Assim, em tempos em que teorias da conspiração buscam um culpado pela pandemia, seria preciso um esforço coletivo de veículos de informação para desmistificar ou desmascarar conteúdos falsos—“debunk”, em inglês”.

Mas o que fazer quando a estratégia de desinformação não envolve uma fake news clara como essa sobre o vírus e o 5G?

O debate em torno do uso da hidroxicloroquina é um desafio imposto à imprensa, se não novo, diferente, porque não se trata rigorosamente de fake news—ainda que o modo como o tema ganhou destaque obedeça à trajetória de disseminação do conteúdo falso.

Nesse caso, pessoas que nada sabem do assunto decidiram encampá-lo seguindo convicções e objetivos próprios.

Nesse caldo, há de tudo: teorias da conspiração (o remédio teria sido confiscado para que as pessoas não tenham acesso a ele), alguém querendo obter vantagem (médicos reservariam o uso para si, negando-o aos seus pacientes), ignorância, além da manipulação de um desejo legítimo, a ânsia pela cura.

Assim, uma droga cujos testes ainda são inconclusivos foi transformada em boia de salvação por grupos engajados que politizaram a questão de modo bastante eficaz.

"E aí, você é contra ou a favor da cloroquina?”, provocou um leitor, ironizando o rebaixamento do assunto a uma questão de opinião.

O resultado é que o maior defensor local da cloroquina, o presidente Jair Bolsonaro, conseguiu elevar o tema aos tópicos mais comentados não só nas redes sociais, mas também nas páginas dos principais jornais do Brasil.

A imprensa tentou resistir, mas foi pautada novamente, recheando suas páginas (em especial a Folha) da fórmula de opor “um texto a favor” a “um texto contra”.

Ao longo da semana, as páginas do jornal foram tomadas por intenso bate-boca sobre a droga entre médicos e autoridades, tanto no noticiário como nos artigos de opinião, nos quais médicos pediam ou a sua liberação ou que a ciência prevaleça no debate em torno do remédio.

Isso, fora as matérias anedóticas sobre pessoas com coronavírus que foram salvas ou que morreram após serem tratadas com o remédio.

Como a imprensa vai sair dessa? Quando forem comprovados os benefícios da droga aos pacientes com o vírus ou quando, equiparada à famosa “pílula do câncer”, a droga voltar a ser mencionada apenas nos protocolos em que se mostra eficiente, como nos tratamentos da malária e do lúpus.

Até lá, teremos gastado páginas e mais páginas com pitadas de informação e muito diz que diz sobre algo que, mais uma vez, alimenta o instinto dos leitores por situações nebulosas e o dos jornais por cliques: três das dez matérias mais lidas da Folha por toda a tarde de quarta-feira (8) falavam da cloroquina.

Não cabe aos jornais a tarefa de desmascarar a cloroquina em si—cujo uso em pacientes com coronavírus é uma realidade em hospitais e vem sendo objeto de estudos—, mas o falso debate em torno dela precisa ser desmistificado.

Um bom começo é deixar claro que o Ministério da Saúde já disse que os médicos têm autonomia, seguida de devida responsabilização, para receitar o medicamento ao paciente.

Algo que poderia ser mais bem explicado é a que interesses próprios o presidente obedece, ao mandar o trabalhador de volta às ruas quando a sua obrigação num momento de calamidade inédito é oferecer recursos para que esse risco seja ao menos mitigado. Além de acenar com uma droga cuja eficácia ainda não foi provada.

Quanto ao jornal, se não é possível ignorar a politização de uma discussão que é sanitária, que ao menos tente escapar dessa armadilha em vez de abusar dos textos “contra” e “a favor”.

Enquanto a cloroquina domina o debate, ainda é preciso entender por quanto tempo o isolamento parcial será necessário, se precisará ser reforçado, quais os planos para deixar a quarentena, por que há entre 20 mil e 30 mil testes na fila para resultados e o que, a esta altura, seria um bom programa de testagem.

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