Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

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Coronavírus acelera, Moro sai atirando e governo deseja ver coisas positivas

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No fim da semana, o número oficial de infectados por coronavírus no Brasil passava dos 50 mil, o de mortes rondava os 4.000 e não havia testes suficientes nem para quem precisava. O sistema de saúde de Manaus entrara em colapso e outras cidades se aproximavam desse quadro.

Trabalhadores seguiam com enormes dificuldades para receber o auxílio financeiro do governo, em meio a longas filas em frente a agências da Caixa espalhadas pelo país.

Ilustração  Carvall ombudsman publicada no dia 26 de abril de 2020, nela o desenho de um pictograma ao centro e a sua volta buracos
Carvall

No front político, informação exclusiva da Folha (o chamado furo jornalístico) apontava que, no início da tarde de quinta (23), em meio a uma crise sanitária gravíssima, o Planalto tentava reverter o pedido de demissão de seu ministro mais bem cotado, Sergio Moro, da Justiça.

É muita notícia ruim. Eu sei que está acontecendo, mas vamos divulgar também notícias boas”, pediu à imprensa um dia antes o ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, que se referia à cobertura da pandemia.

“Com todo o respeito, no jornal da manhã é caixão, é corpo. Na hora do almoço, é caixão novamente, é corpo. E, no jornal da noite, é caixão e é corpo e o número de mortos. Eu pergunto a todos como é que os senhores [jornalistas] acham que uma senhora de idade, uma pessoa humilde, ou uma pessoa que sofre de alguma outra enfermidade se sente com essa maciça divulgação desses fatos negativos? Não está ajudando”, arrematou.

O timing do ministro não poderia ser pior. Dois dias depois da sua fala, com a saída de Moro, o governo criou para si o que, tirando a pandemia, talvez seja sua maior crise.

Faltou ao ministro—que é também responsável pela Secretaria de Comunicação Social do governo Bolsonaro—compreensão do papel do jornalismo.

Entende-se que o leitor busque notícias positivas para aliviar a tensão ou alimentar esperanças. Na boca de governantes, agenda positiva soa como expressão de assessoria de comunicação, usada por quem busca ser bem retratado.

A função primeira da imprensa não é ajudar o poder constituído, mas fiscalizá-lo, o que exige que se saia em busca do que não funciona conforme o combinado, o prometido, ou a lei.

O que o ministro talvez não tenha entendido é que cabe ao governo “produzir boas notícias”, na forma de uma estratégia clara e coordenada de combate à pandemia, hospitais aparelhados, profissionais da saúde bem apetrechados e população atendida.

É claro que há lugar para narrativas positi vas—geralmente excepcionais, como a vitória do militar brasileiro de 99 anos sobre a Covid-19—ou mesmo para a descontração.

Esse equilíbrio tem sido buscado pelos jornais, embora nem sempre com bons resultados, como mostrou a Folha no sábado (18), ao ter a péssima ideia de reproduzir memes de supostos sósias do atual ministro da Saúde, Nelson Teich.

Replicar num jornal memes sobre, por exemplo, o coronavírus pode ter alguma graça. Fazer isso envolvendo um ministro soou gratuitamente ofensivo, desrespeitoso e infantil.

Existe também o risco de a imprensa, ao se render às “boas histórias”, alimentar consequências desastrosas.

O documentário “A Inventora: à procura de Sangue no Vale do Silício”, sobre uma empresa americana da área de medicina laboratorial, mostra um pouco disso.

Aos 19 anos, Elizabeth Holmes abandonou a Universidade Stanford, na Califórnia, com a ideia de criar um laboratório portátil, capaz de realizar, a partir de gotas de sangue, dezenas de exames—o que poderia revolucionar o setor.

A mistura de empreendedorismo com bons propósitos foi abraçada não só por figurões da política americana mas pelo jornalismo, que alçou Holmes e seu negócio ao estrelato—além de abrir espaço para a atração de bilhões de dólares.

Após capas e mais capas de revistas, soube-se que o minilaboratório não funcionava bem e que um acordo comercial com uma grande rede de farmácias havia posto em risco a saúde de pessoas.

A longa farsa começou a ruir quando denúncias de ex-funcionários chegaram a um repórter que se dispôs a investigar.

A lição é que o mundo espera por notícias extraordinárias, seja para aparecer bem no retrato, seja para alimentar bons sentimentos e aplacar frustrações. Mas, enquanto elas não ocorrem, é importante que o jornalismo siga fazendo o seu trabalho.

É possível que a divulgação maciça dos fatos sobre a pandemia não deixe a senhora de idade, humilde ou com alguma enfermidade, feliz, como disse o ministro.

Mas é um caminho para que ela seja informada, inclusive das cobranças feitas aos governos. E, em caso de necessidade, consiga ser bem atendida por um hospital público de modo que não acabe fazendo parte de estatísticas tão estarrecedoras.​

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