Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

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Flavia Lima

Sobre violências

Cobertura do Alvorada compõe teatro bolsonarista, mas pouco afeta apuração

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Numa semana agitada, alguns veículos de comunicação, como Folha de S.Paulo, UOL e Grupo Globo, anunciaram a suspensão da cobertura jornalística feita na porta do Palácio da Alvorada, a residência oficial do presidente da República, até que o Planalto garanta a segurança dos profissionais.

O Correio Braziliense já havia deixado de cobrir o local, mas em razão da pandemia.

na ilustração, palácio do planalto com grades na frente
Carvall

“Confesso que não entendia a insistência da Folha em continuar cobrindo o Planalto em campo. Salutar a decisão de preservar os repórteres, embora tardia”, disse um leitor.

Na sexta-feira (29), o Grupo Bandeirantes orientou suas emissoras de rádio e TV a não transmitirem mais ao vivo as declarações do presidente. Segundo a emissora, palavras chulas ditas por Jair Bolsonaro desrespeitariam o público.

Questionada pela coluna meses atrás, a Folha dissera ter a obrigação de cobrir o presidente da República, o posto político de maior responsabilidade do país, onde quer que ele se manifestasse. A segurança a fez mudar de ideia?

Não é de hoje que os repórteres se submetem a humilhações. Já no dia da posse de Bolsonaro, todas as cadeiras foram retiradas do salão destinado à imprensa e os repórteres foram obrigados a cobrir o evento do chão. As copeiras foram instruídas a não servir nada aos jornalistas.

Na porta do Alvorada, repórteres são confinados numa espécie de “curral moralmente insalubre”, como resume Eugênio Bucci, professor da USP e colunista do jornal O Estado de S. Paulo.

Um dos pontos mais baixos dessa trajetória talvez tenha sido o dia em que Bolsonaro apareceu no local com um comediante, que tentou distribuir bananas aos jornalistas.

Mas o ambiente vem se tornando mais hostil e violento à medida que o presidente se sente mais acuado pelos inquéritos que apuram suposta tentativa de interferência na Polícia Federal e a existência de uma rede de fabricação de fake news.

O esquema envolveria políticos, empresários e youtubers—“a mídia que eu tenho a meu favor”, como disse o próprio Bolsonaro em interpretação que, convenientemente, ignora que o papel da imprensa não é produzir material favorável a seu governo e prejudicial a quem considera inimigo, mas ser crítica ao poder.

Assim, o argumento dado pelos jornais de que o lugar não oferece segurança talvez conte apenas parte da história.

O ponto central não se resumiria a um pedido para aprimorar medidas de proteção no local, mas incluiria, por parte da imprensa, uma resposta institucional a um processo de agressão que é parte constitutiva desse governo.

Por trás do pedido por mais segurança, haveria, então, uma questão ética traduzida na ideia de que o tratamento deixou de ser aceitável.

É por isso que jornalistas continuam cobrindo a pandemia, assim como cobririam guerras e golpes de Estado, mas deixaram de lado as baixarias do Alvorada.

Colunas atrás, preocupada com prejuízos à cobertura, disse que a saída não era deixar o presidente falando sozinho, mas gastar mais energia na contextualização dessas falas, como forma de interromper o fluxo de desinformação.

Sem dúvida, o presidente vai lidar com menos questionamento e isso não é o ideal.

Também foi nesse espaço que Bolsonaro manifestou a vontade de trocar o superintendente da Polícia Federal do Rio de Janeiro, por exemplo.

Mas essas e outras declarações podem ser apuradas pela Folha sem que o repórter precise necessariamente estar no local.

Com a decisão dos veículos de afastar seus repórteres, talvez se descubra que o palco das humilhações é parte fundamental no teatro bolsonarista, mas pouco importante para a apuração do que é esse governo e de quais são os rumos pensados para o país.
*
O assassinato de mais um homem negro por um policial, desta vez nos EUA, leva a imprensa a repetir equívocos. A descrição de foto na capa do Estado de S. Paulo de sexta-feira (29) é chocante: “Morte de negro nos EUA causa violência”. A violência foi causada por quem e contra quem?

Na cobertura dos dias seguintes ao crime, na imprensa brasileira e americana, a discussão sobre a violência do Estado contra a população negra foi, em alguns casos, encoberta por imagens de negros ameaçadores e violentos saqueando comércios e queimando carros.

A mudança de foco só reforça estereótipos e ajuda a eliminar culpas, mantendo as coisas no trágico lugar em que sempre estiveram.

No sábado (30), o governador de Minnesota disse, sobre os protestos, que não se tratava mais do assassinato de George Floyd, mas de atacar a sociedade civil e instilar medo.

A imprensa precisa estimular o debate e mostrar que a questão central é o assassinato sistemático de pessoas negras. É isso que dá medo.

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