Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

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Flavia Lima

Debochada ou homofóbica?

Capa evoca nudez de secretário da Cultura, atrai críticas e estimula reflexão

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No sábado (20), na Ilustrada, uma imagem na capa do caderno evocou a nudez do novo secretário da Cultura, Mario Frias, sob o título "O novo homem do presidente". Ao ver a capa naquela manhã, pensei que a combinação fosse gerar reações, mas nada nem perto da avalanche de críticas que se seguiu.

"Em pleno mês do Orgulho LGBT, um jornal que estampou um beijo gay na primeira página fazer uma capa com um trocadilho homofóbico no principal caderno de cultura do país, usando uma foto antiga com uma pessoa sem roupa? Não dá. Muito triste", disse um leitor.

Ilustração de estátua grega que joga um disco, mas o disco e seu rosto são círculos pretos. Ela segura um deles, que está acompanhado de outros dois, formando reticências
Carvall

Segundo outro, "rir de uma insinuação como essa faz de nós pessoas piores. O jornal não deveria se colocar na posição de quem usa uma suposta imoralidade para criticar o que está errado por outros motivos".

Imagem mostra o ator Mário Frias em ensaio sensual do extinto site Paparazzo
Reprodução

No Twitter, muitos comentários, a maioria de desaprovação: "A Folha protagoniza uma das maiores vergonhas do jornalismo brasileiro", disse um; "Com apoiador do governo pode, né? Aí não rola homofobia", ironizou outro.

No geral, a capa foi vista como homofóbica e moralista. A cultura, disseram muitos, merecia mais cuidado em meio a tanta negligência.

O histórico de desrespeito com a área e a ausência de currículo como gestor de Mario Frias estão contemplados na reportagem. Alinhado ao discurso bolsonarista, o ex-galã assumiu o comando de uma pasta mais conhecida pelas performances de seus titulares, acusados de censura, apologia do nazismo e destemperos na tevê.

O texto, contudo, foi ofuscado por título e imagem, combinação vista como preconceituosa e sensacionalista.

É disso que se trata?

O uso da sexualidade para deslegitimar o outro não tem nada de novo.

De fato, seria uma bobagem ligar o suposto despreparo de Frias a seu ensaio sensual, sugestão que encobriria o verdadeiro problema, que não é, obviamente, a falta de roupa, mas a falta de qualificação para exercer o cargo.

"Me lembra as críticas moralistas ao Frota [Alexandre Frota, ex-ator pornô e hoje deputado pelo PSDB]. De tudo, talvez o que eu mais respeitava nele era o trabalho de ator pornô", diz um leitor.

Mas a capa abre espaço para outras interpretações.

Não acho que insinue um possível "affaire" entre Bolsonaro e seu novo homem ou desqualifique e ridicularize homossexuais.

"Não é dos gays que se tira sarro, mas do governo de um homem homofóbico, que se diz conservador e técnico. Só expõe a hipocrisia. Isso se chama deboche. Homofobia é o que Bolsonaro pratica há 30 anos", disse um leitor.

O que o leitor está apontando é que título e imagem recorrem à ironia e ao deboche para explicitar contradições.

O escárnio funcionaria, assim, como substituto da argumentação racional, interditada por um governo que desumaniza parte da sociedade, defendendo abertamente que minorias (reais ou imaginárias) se dobrem à maioria.

Questionado, o editor da Ilustrada, Silas Martí, diz que a imagem reflete a fase em que a carreira de Mario Frias como ator esteve no auge. Já o título remete às constantes analogias com namoro, noivado e casamento que o próprio presidente costuma fazer em relação aos ocupantes dos cargos-chave de seu governo.

"Não deixa de ser irônico, é claro, que um governo escorado no conservadorismo dos costumes, sobretudo na área da cultura, tenha feito essa escolha. E é evidente que há humor e ironia na capa da Ilustrada. A escolha segue a tradição do caderno, que sempre olhou para a cultura com ar cáustico e irreverência ancorados no jornalismo crítico e rigoroso que tornou a Folha o que ela é hoje", diz Martí.

A repercussão mostra que nada na capa é evidente, como diz o editor, mas a ironia está lá. Em seu Manual da Redação, a Folha desaconselha o uso da ironia em colunas e artigos, advertindo que sempre haverá quem a tome em sentido literal.

Com a capa, o jornal decidiu correr o risco, amealhou muitos cliques e pautou um debate necessário: a forma como os jornais abordam a comunidade LGBTQI+.

O governo Bolsonaro se posiciona contra as perspectivas que pensam o gênero e elegeu como legítima apenas a família tradicional. Portanto, é um bom exercício imaginar como conservadores veem numa capa de jornal, encarnado em um de seus representantes-heróis, o mundo do qual querem ver-se livres.

A reprovação da capa, sobretudo por parte da comunidade LGBTQI+, merece atenção.Mas talvez seja nessa ambivalência de leituras que se encontra a potência do material.

Em comentário enviado ao Painel do Leitor da Folha, a escritora Milly Lacombe desaprovou a página ("LGBTfóbica e moralista"), mas concedeu: "Acho que vai render bons debates e trazer à luz reflexões importantes".

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