Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

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Flavia Lima

Erro do New York Times?

A defesa da liberdade de expressão e a falsa ideia de que jornais acolhem tudo

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No início de junho, o senador americano pelo estado do Arkansas, Tom Cotton, assinou um artigo na página de opinião do jornal americano The New York Times pedindo a intervenção das Forças Armadas para conter os protestos contra a morte de George Floyd, homem negro assassinado por um policial branco.

O artigo recebeu quase 2.400 comentários, muitos deles negativos. Além disso, parte da Redação reagiu formalmente, com uma carta ao jornal assinada por cerca de mil funcionários, segundo contou o colunista de mídia do New York Times, Ben Smith.

Ilustração mostra máquina de escrever em preto e branco, com grande papel ondulado saindo da carretilha
Carvall

O texto não foi excluído da plataforma digital, mas ganhou uma nota explicativa. A crise interna culminou na saída do editor de opinião do periódico, James Bennet.

Em editorial publicado na quinta-feira (11), a Folha decidiu se pronunciar sobre o caso.

Ressaltou que o artigo do senador se "encaixava perfeitamente nos cânones do livre debate" e que, dados os seus defeitos, o texto acabaria por oferecer munição para os adversários. Disse ainda que, ante os protestos e seus desdobramentos, o New York Times prestava um "desserviço à liberdade de expressão".

Não acredito que o caso se esgote nos pontos destacados pelo editorial da Folha.

De fato, a defesa da liberdade de expressão é incontestável, e um jornal que busca ser plural e relevante precisa dar voz a diferentes posições—sobretudo àquelas com as quais não concorda.

Além disso, o senador republicano não só ocupa um cargo de imensa representatividade (e, portanto, suas ideias, teoricamente, têm relevância para um jornal e seus leitores) como também é livre para defender o que lhe vier à cabeça—ainda que seja mandar militares partir para cima do povo.

No entanto, é preciso levar outros aspectos em consideração para entender melhor o desfecho do ocorrido.

Da parte dos profissionais do New York Times, eles alegaram que pedir tropas nas ruas colocaria em risco o trabalho jornalístico, sobretudo de profissionais negros. Vale lembrar do repórter da CNN preso ao vivo pela polícia sem justificativa plausível.

Já o publisher do jornal, A. G. Sulzberger, disse que não poderia continuar com Bennet à frente da seção de opinião por ter havido falhas no processo de edição.

Bennet admitiu à Redação do jornal que não leu o texto que publicou. Independentemente do teor do artigo, como é possível publicar algo que não foi lido?

A ideia de que as Forças Armadas são instituição do Estado e não de governo parece ser levada a sério pelos americanos, a ponto de a principal autoridade militar do país, o general Mark Milley, ter vindo a público pedir desculpas por ter passado essa impressão.

Portanto, o conteúdo do texto contraria uma ideia cara à democracia americana. O senador, porém, poderia ter ido além e sugerido bombardear os manifestantes. O editor não saberia, pois não leu o artigo, abdicando da sua própria função.

Outro ponto importante nessa equação é que a defesa da liberdade de expressão, que, obviamente, deve prevalecer, encobre uma falsa ideia de que as páginas dos jornais acolhem tudo—e que os processos jornalísticos são infalíveis.

Sabemos que isso não é verdade. Quem consegue ter acesso às páginas de opinião de um jornal de grande circulação?

O episódio mostra que não houve uma discussão sobre a relevância do texto do senador, mas algo mais próximo a uma carteirada de um político importante, que parece ter usado um dos jornais mais influentes do mundo como se fosse uma de suas contas nas redes sociais.

No editorial em que a Folha critica o New York Times, mais alguns pontos chamaram a atenção.

A Folha diz que talvez exista um fator geracional no movimento da Redação do jornal americano, pois "a maioria dos profissionais hoje em atuação se formou num período em que a liberdade de expressão jamais esteve ameaçada".

Não é bem assim. Segundo Ben Smith, o colunista de mídia do jornal, as redações americanas vêm contratando repórteres negros ao longo dos anos sob a condição tácita de não falarem sobre racismo.

O editorial da Folha afirma que "momentos de emoções à flor da pele não raro descambam para atos obscurantistas". Podem resultar em avanços também.

É possível começar refletindo sobre quem são as pessoas que frequentam com mais assiduidade os espaços nobres dos jornais. Se o critério usado para isso for diversidade, é preciso dizer que ainda estamos mal.

Por fim, a Folha diz ser "triste que jornalistas, em particular, não compreendam o valor de publicar ideias que contrariem frontalmente as suas próprias". Está aí algo do qual não é possível discordar.

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