Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

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Flavia Lima

Os ataques aos chargistas

Figuras autoritárias miram a imprensa e recusam crítica de qualquer espécie

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"Gostaria de relatar o sumiço, no site da Folha, da charge de 8 de junho de João Montanaro. A galeria pula do dia 7 para o dia 9. Foi uma ameaça do governo ou pressão de alguém insatisfeito?", perguntou uma leitora.

Não houve sumiço. A editoria responsável informou que, por um erro técnico, corrigido rapidamente, a charge não estava no lugar em que deveria. Porém, diante do que ocorreu nos últimos dias, a preocupação da leitora não é descabida.

Charge
Carvall

Na primeira quinzena de junho, alguns dos mais talentosos chargistas do país foram interpelados judicialmente.

O governo Jair Bolsonaro pediu abertura de inquérito para investigar o chargista Renato Aroeira, solicitando também que o jornalista Ricardo Noblat, colunista da revista Veja, fosse investigado por ter publicado o material de Aroeira em rede social.

A ilustração mostra o presidente pintando as extremidades da cruz vermelha, emblema da assistência humanitária, com uma tinta preta, formando a suástica. Foi feita depois que Bolsonaro pediu aos seus seguidores que filmassem o interior de hospitais para checar se os leitos de emergência estavam ocupados.

Dias antes, a Folha e quatro cartunistas (Laerte, João Montanaro, Alberto Benett e Claudio Mor) foram interpelados pela publicação de charges críticas à violência policial.

O pedido de explicações —uma espécie de preparação para futura ação penal— foi feito pela Associação de Oficiais Militares do Estado de São Paulo em Defesa da Polícia Militar (Defenda PM), grupo conservador cujo presidente é assessor parlamentar do senador Major Olímpio (PSL-SP).

O grupo acionou a Folha seis meses após as charges serem publicadas —todas em referência à invasão, pela PM, da favela de Paraisópolis, em São Paulo, ação que causou nove mortes.

A interpelação só não é mais caricata do que o ataque feito no fim de 2019 pelo deputado Coronel Tadeu (PSL-SP), ao destruir uma peça de uma exposição, na Câmara dos Deputados, que reproduzia charge sobre a violência policial contra a população negra.

Por que tanto incômodo?

Não há limites para o humor. O que há são recursos jurídicos para aquele que se sinta ofendido —o que não se encaixa nesses casos.

Os ataques à crítica humorística parecem mirar alvos específicos (os cartunistas, a Folha, o jornalista Noblat), mas o duro recado é dirigido à imprensa por gente que não quer ver suas ações analisadas criticamente e, no caso dos desenhos de humor, muitas vezes expostas ao ridículo.

Sabemos que Bolsonaro não pegou uma lata de tinta preta e saiu por aí pintando suásticas. Nos desenhos de humor, o essencial é o aspecto alegórico, metafórico, figurado do comentário crítico—de imediata compreensão.

Não dá para acusar o chargista de ser pouco fiel à realidade porque isso é evidente: é o inverídico, mas de fácil percepção, que dá graça à situação.

A charge é um desenho de humor ao lado do cartum, da caricatura, da ilustração e das histórias em quadrinhos. Tem uma função editorial relevante ao retratar criticamente temas atuais, muitas vezes refletindo o perfil da publicação.

A Folha sempre deu à charge lugar nobre em suas páginas, já ocupadas por desenhistas do tamanho de Glauco, Angeli, Laerte e Paulo Caruso.

Belmonte, cartunista central entre as décadas de 1920 e 1940, pode ser considerado o avô dessa geração. Desenhava na Folha da Noite e na Folha da Manhã, mais tarde unidas na Folha de S.Paulo.

Seu principal personagem, Juca Pato, encarnava as preocupações da classe média paulistana, e muito de sua crítica satírica mirava Getúlio Vargas (que chegou a proibi-lo de fazer seus desenhos) —e Hitler.

Diz a lenda que Belmonte foi criticado por Joseph Goebbels, chefe da propaganda nazista. Não consta que tenha sido processado pelo regime.

Em resposta à interpelação, a Folha afirma que charges não comportam explicações e que se a entidade estivesse preocupada com a imagem da PM estaria inconformada com a letalidade da instituição.

As charges fazem referência a eventos específicos de um momento histórico e, por isso, são de difícil compreensão fora do contexto.

Isso torna a reação do grupo de policiais ainda mais esdrúxula. As charges que abordam a violência policial poderiam ter retratado o que ocorre nas periferias ontem, há 20 ou 30 anos: qualquer um entenderia.

O riso fala dos valores morais de uma sociedade e pode reforçar a manutenção de suas relações sociais. No entanto, é poderoso quando problematiza essas relações sociais e seus imbróglios políticos, seus preconceitos e desigualdades.

Parece exagerado imaginar o sumiço de uma charge do jornal por pressão de uma autoridade, mas não é. A imprensa não foi eleita como inimiga dessas figuras autoritárias por acaso.

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