Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

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Flavia Lima

A Folha e as sobras da ditadura

Episódios recentes mostram tarefa urgente de lidar com entulho autoritário

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"Foi fácil entrar na ditadura, difícil foi sair", escreveu o colunista Elio Gaspari em artigo publicado na Folha na semana passada.

Uma olhada em alguns episódios que envolvem a Folha e o tema espinhoso da ditadura mostra que há mais obstáculos nessa jornada.

uma camisa da seleção brasileira em forma de bandeira
Carvall

A terceira versão do Manual da Redação da Folha—texto feito com o objetivo de traduzir em normas a sua concepção de jornalismo—, de 1992, trazia uma curiosa recomendação: não usar a expressão ditadura militar "para designar o movimento militar" ocorrido no Brasil entre 1964 e 1985.

Em manual, a mudança só veio na versão seguinte, de 2001. Os jornalistas da Folha entraram o século 21 informados de que, "em textos noticiosos, pode-se [e aqui é importante frisar a possibilidade] usar a expressão ditadura militar para designar o regime que vigorou no Brasil de 1964 a 1985".

Foi só na versão de 2018 que se assumiu de modo claro que "a expressão ditadura militar designa o regime que vigorou no Brasil de 1964 a 1985".

Da recomendação de não usar a expressão ditadura ao reconhecimento de que o termo era o mais adequado para descrever o período de regime militar levaram-se 26 anos.

Diante disso, surpreende menos a dificuldade, mostrada mais uma vez em 2009, de chamar as coisas pelo nome.

No início daquele ano, em editorial que apontava desmandos do então presidente venezuelano Hugo Chávez, o jornal achou oportuno nomear o período militar brasileiro de "ditabranda", relativizando o fenômeno e propondo uma rediscussão sobre o grau de arbítrio de períodos autoritários.

Os episódios também amenizam a surpresa, já em 2014, de se deparar com a defesa, pelo jornal, dos resultados econômicos do período militar.

Em editorial sobre os 50 anos do golpe, a Folha repudia o regime militar, mas esclarece em determinado trecho: "Isso não significa que todas as críticas à ditadura tenham fundamento. Realizações de cunho econômico e estrutural desmentem a noção de um período de estagnação ou retrocesso. Em 20 anos, a economia cresceu três vezes e meia", disse. "A inflação, na maior parte do tempo, manteve-se baixa. Todas as camadas sociais progrediram, embora de forma desigual, o que acentuou a iniquidade".

Sim, é possível contar uma ficção dizendo só verdades.

Com raras exceções, a imprensa apoiou o golpe civil-militar de 1964. Embora durante a sua campanha eleitoral o presidente Jair Bolsonaro só tenha apontado o dedo para a Globo, o fato é que, como um todo, os grandes veículos de comunicação tiveram papel importante no xadrez político que desembocou na ditadura.

O suporte parece contraditório quando se sabe que a censura aos meios de comunicação é uma das primeiras tarefas a que se dedicam esses regimes.

Em nome de interesses múltiplos, nem sempre convergentes com os da população, jornais têm normalizado guinadas autoritárias pelo menos até que os novos donos do poder se voltem mais enfaticamente contra a própria imprensa.

No entanto, transigir com a arbitrariedade e o autoritarismo em nome, por exemplo, de políticas econômicas é um erro grave e custa credibilidade.

Um salto para outubro de 2018 e nos deparamos com um editorial do jornal O Estado de S. Paulo ("Uma escolha muito difícil"), em que o "direitista" Jair Bolsonaro (então no PSL) e o "esquerdista" Fernando Haddad (PT) eram comparados para concluir que "não será nada fácil para o eleitor decidir-se entre um e outro".

Em setembro do mesmo ano, a Folha afirmava que atitudes de Haddad e de seus companheiros levavam boa parte do eleitorado a desconfiar da "profundidade de seu compromisso com o Estado democrático de Direito". Isso, a despeito da inexistência de riscos à democracia durante mais de uma década de PT no poder. Na eleição do Bolsonaro, a Folha determinou internamente que não se usasse “extrema direita” para se referir a ele.

Não sem dificuldades, os jornais acabam se retratando de decisões pouco abonadoras. No episódio da "ditabranda", a Folha disse que errou, admitindo que "o termo tem conotação leviana, que não se presta à gravidade do assunto".

Em campanha recém-lançada em defesa da democracia, o jornal fez um mea-culpa. Disse que foi um erro o apoio dado ao regime num primeiro momento e mudou o tom da análise ao dizer que a campanha serve também para "acordar os saudosistas de um mundo de fantasia, em que não haveria corrupção nem escândalos, a segurança pública seria grande, e a economia, milagrosa".

O passado nem tão distante mostra que a Folha também já esteve disposta a acreditar em milagres.

Voltando à frase de Gaspari sobre a dificuldade de sair da ditadura, eu acrescentaria: ainda mais complexo (e urgente) é se ver livre de suas sobras.

A Folha se firmou como um jornal arejado e crítico, feito por gente competente e apaixonada, e é assim que a maioria de seus leitores deseja vê-la nos próximos cem anos. Reconhecer seus erros é parte disso.​

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