Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

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Flavia Lima

Circo de horrores

Aborto e outros temas delicados precisam ser abordados com seriedade

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Na semana passada, reportagens mostraram que uma menina de dez anos foi levada a um hospital no Espírito Santo, onde foi descoberta a sua gravidez. A criança, segundo inquérito aberto pela polícia do estado, sofria abusos de um tio havia quatro anos.

O caso poderia ser um prato cheio para o sensacionalismo. De fato, a extrema direita, religiosos conservadores e políticos ávidos de holofotes tentaram fazer dele uma espécie de circo de horrores.

um circo com uma bandeirola em cima escrito "notícia"
Carvall

Não se sabe como, a informação vazou. Pessoas contrárias ao aborto foram à porta da maternidade pública onde ocorreu o procedimento, no Recife, e tentaram impedi-lo, além de hostilizar os profissionais de saúde da unidade. Curioso que a extrema direita eleja a pedofilia como o mal maior, mas, na hora em que ela se configura, faça de tudo para olhar para o outro lado.

Entre os grandes veículos de comunicação, o que chamou a atenção foi a cobertura sóbria e cuidadosa do caso.

Na Folha, as reportagens buscaram contextualização, explicando de maneira clara que a lei brasileira autoriza o aborto em casos de gravidez resultante de estupro, risco de morte para a gestante ou caso de anencefalia do feto e que, ainda assim, interpretações médicas ou judiciais podem fazer com que meninas, adolescentes e mulheres tenham seus direitos postergados ou até mesmo não atendidos.

Uma leitora observou que, em meio a frases destacadas para a repercussão do caso, a Folha incluiu os impropérios ditos por Sara Giromini—extremista que, segundo a leitora, não teria idoneidade para ter uma de suas frases incluídas no destaque.

Outro ponto que chamou a atenção foi a reprodução, feita pela Folha, de afirmação do suspeito, que disse manter relacionamento com a criança desde 2019—a palavra "relacionamento" foi colocada entre aspas.

Como não há relacionamento sexual possível com uma criança (a menina de dez anos disse que era estuprada desde os seis), as aspas usadas para enfatizar a declaração podem confundir e até mesmo produzir outros efeitos, como o de ironia. Seria melhor que a afirmação tivesse sido acompanhada de contextualização: não importa o termo que o suspeito queira dar, o que ocorreu é crime.

O procedimento médico começou no domingo (16). Na noite do mesmo dia, a Folha publicou o nome do hospital onde a menina estava internada.

Mais cuidadoso, o Globo não divulgou o nome do hospital nem mesmo na segunda (17). Em outro bom exemplo, o Jornal Nacional separou alguns segundos para dizer que não diria o nome do suspeito pelo longo histórico de abusos, nem o identificaria de nenhum outro modo para não expor a garota e protegê-la de ataques.

No Brasil, segundo dados oficiais, em média, seis meninas entre 10 e 14 anos estupradas são internadas por dia em decorrência de abortos, promovidos ou não no hospital. Já o aborto ilegal é uma das maiores causas de óbito entre mulheres grávidas, algo que atinge principalmente as pobres e negras.

Ainda assim, a interrupção da gravidez é geralmente discutida sob uma perspectiva religiosa ou moral, não como uma questão de saúde pública.

Se a sociedade ainda não parece preparada para fazer um debate sereno em torno da questão, que a mídia siga fomentando-o com a seriedade que merece.

É pena que a própria Folha tenha abandonado essa mesma seriedade ao abordar outro tema que ganhou destaque ao longo da semana: as discussões acerca do mecanismo de limite de gastos públicos.

Uma reportagem rasa sobre o assunto foi publicada na terça (18). Nela, banqueiros e gestores são ouvidos sob anonimato para chegar à conclusão de que Bolsonaro se compara a Dilma, pois o governo gasta mais do que pode.

Após a reportagem, editorial publicado na sábado (22) dobrou a aposta, fazendo a defesa da austeridade fiscal sob o sugestivo título "Jair Rousseff".

Dilma Rousseff acreditava que a política de gastos desenfreados—que incluía os tais "programas redentores de obras públicas e de assistência social", como diz o editorial—traria crescimento econômico.

Em quase dois anos de governo, é possível dizer que Jair Bolsonaro não é um liberal nem um desenvolvimentista, mas alguém que fará o que for necessário para se reeleger.

Já a Folha parece lançar mão de um artifício infantil para fazer o presidente mudar de ideia, usando algo que ele consideraria ofensivo: a comparação com a ex-presidente.

Para Dilma, ver seu nome associado a alguém que, entre outras coisas, celebra o torturador Brilhante Ustra e já disse, para voltarmos ao tema central deste texto, que não estupraria uma deputada porque ela não merece, significaria o quê? Circo de horrores.

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