Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

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Flavia Lima

Truques para atrair o leitor

Título merece cuidados, pois pode ser o único contato com a notícia

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No domingo (2), uma resenha publicada no site da Folha escrita pela antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz sobre o novo trabalho da cantora americana Beyoncé, "Black Is King", causou barulho nas redes sociais.

Na crítica interna que enviei à Redação no dia seguinte, ressaltei um aspecto que considerei relevante: o título e a "linha fina" (o subtítulo do texto) pareciam alguns tons acima do conteúdo do artigo.

Ilustração Carvall  para coluna Ombudsman publicada no dia 09 de agosto de 2020.
Folhapress

A autora voltou às redes sociais na terça (4) e, entre desculpas a quem se sentiu ofendido pelo texto, manifestou o incômodo: disse que título e subtítulo traziam coisas que não dissera e que o jornal deveria assumir sua responsabilidade sobre isso.

No sábado (8), a Folha publicou um Erramos com reparos ao conteúdo do texto, mas sem nenhuma menção ao episódio.

Não é a primeira vez que a desconexão entre título e conteúdo do texto é apontada, mas é incomum que isso venha de um articulista—normalmente, são os leitores que o fazem.

O episódio levanta algumas perguntas. Até que ponto o título e a linha fina contribuem para a forma como um texto é lido? Há algum protocolo sobre a participação do autor do texto na aprovação final dele?

Como o Manual da Redação da Folha reconhece, títulos e subtítulos são o principal, quando não o único, ponto de contato de muitos leitores com a notícia—daí a importância de que sejam a um só tempo claros e exatos, sobretudo no mundo digital, onde se perde a visão de conjunto.

Não foi bem o que aconteceu.

O artigo de Schwarcz é cheio de referências. Nas passagens mais críticas, a antropóloga fala da estranheza causada ao ver a ícone pop recorrer "a imagens estereotipadas de uma África caricata e perdida no tempo das savanas isoladas", além de duvidar de que, nesse contexto racializado, jovens se reconheçam na história de retorno a um "mundo encantado e glamorizado, com muito figurino de oncinha e leopardo, brilho e cristal".

A autora encerra levantando a hipótese de que, talvez, seja a hora de Beyoncé "sair um pouco da sua sala de jantar e deixar a história começar outra vez, e em outro sentido".

Pois bem, com pequenas alterações no impresso, o título que introduz o artigo diz que "Filme de Beyoncé erra ao glamorizar negritude com estampa de oncinha", enquanto o subtítulo complementa: "Diva pop precisa entender que a luta antirracista não se faz só com pompa, artifício hollywoodiano, brilho e cristal".

Pode-se argumentar que, para chamar a atenção do leitor, o editor expôs de maneira mais ferina o que a autora apenas sugeriu. Ocorre que isso não pode ser feito à custa da aderência da chamada ao conteúdo do texto.

As palavras usadas no título estão quase todas no texto, mas foram recombinadas em um resultado bem mais impactante. E aquilo que não consta no artigo é ainda mais explosivo. Em nenhum momento é dito que Beyoncé "precisa entender" algo.

Mais que chamarem a atenção dos leitores, título e subtítulo acabaram condicionando a leitura e levando à polêmica.

Tudo isso sem o sinal verde da autora, que assegura que não sugeriu o título nem foi consultada sobre ele antes da publicação—o que demonstra falha nos controles da Folha.

O editor é o profissional que refina o texto, tornando-o mais atraente. Entre inúmeras atividades, pode, segundo o Manual da Redação, fazer modificações para condensar o conteúdo ou aprimorar o texto desde que submetidas à aprovação do autor.

Já o título é a forma como o jornal faz a mediação entre o autor e o leitor. Ele pode ditar o sucesso ou o fracasso de um texto, a ponto de existirem ferramentas disponíveis hoje que permitem que o jornal avalie rapidamente, entre duas opções de titulação, qual delas leva a mais leitura.

Algumas vezes, esse esforço para atrair o leitor é feito na base de truques para caçar cliques, como uma omissão ou uma adição em relação ao texto—numa espécie de promessa de algo que não será entregue. Pode ser que, sem a chamada forte, o artigo não tivesse alcançado tantos leitores.

Segundo um leitor, "a Lilia pode ter sido infeliz em 25% do artigo dela, mas o sensacionalismo recorrente da Folha passar batido é angustiante. Quem tem que refletir não é só a autora, vocês também". Do ponto de vista técnico-jornalístico, a Ilustrada turbinou o título e, com isso, errou.

O caso lança luz sobre um processo do jornal que precisa ser melhorado: a governança na edição e os direitos de quem escreve para a Folha. Se antes uma intervenção malfeita durava o tempo de o jornal ser descartado, hoje a internet pode perpetuá-la.

No mais, torço para que o debate seja ampliado, incluindo aí a expansão das fontes consultadas pelo jornal. Quanto ao conteúdo do artigo, fico com uma bem-humorada jovem internauta: "Meu amor, contra o racismo vale até oncinha e cristal".

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