Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

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Flavia Lima

Jornalismo sob ataque

Entender o caminho trilhado pela imprensa até aqui talvez a ajude a sair dessa

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Nos últimos dias, ganhou novos contornos o esforço de desgastar a imprensa e inculcar no público dúvidas sobre a veracidade do que é publicado.

Após um domingo de muito sol e calor, o jornal O Estado de S. Paulo trouxe em sua capa de segunda (31) uma foto da praia de Ipanema, no Rio, lotada. Não demorou muito que usuários de redes sociais dissessem que a imagem era falsa, publicada com o objetivo de manipulação.

Ilustrações de blocos de anotações de cores variadas
Carvall

Não ficaram claros os motivos dessa suposta manipulação. Se, fazendo coro com os negacionistas, a Covid-19 é algo semelhante a uma gripe, uma praia cheia de gente indicaria que uma boa parte das pessoas se convenceu disso.

Assim, o que explicaria o ataque ao jornal, senão uma vontade genuína de, não importa o assunto ou o cenário, minar a credibilidade da imprensa?

Checadores de conteúdo foram mobilizados para aferir a data em que a foto havia sido tirada e confirmar que tinha sido feita no domingo, mas é improvável que o mesmo grupo de pessoas que leu as mensagens originais tenha tido acesso ao desmentido. Além disso, a quantas dessas pessoas o desmentido tem importância?

Na mesma segunda-feira, reportagem da TV Globo mostrou que a Prefeitura do Rio de Janeiro mobilizou uma rede de funcionários em cargos de confiança para fazer plantões em frente aos hospitais municipais, intimidando usuários da rede, impedidos de falar das suas agruras em relação ao atendimento, e inviabilizando o trabalho da imprensa.

A organização dos funcionários era feita por pelo menos três grupos formados em aplicativo de mensagens, um dos quais nomeado "Guardiões do Crivella", em referência ao prefeito, Marcelo Crivella.

As imagens feitas pela TV Globo são constrangedoras. Numa delas, um "guardião" tenta intimidar um homem que perdeu um dedo. Em outra, dois deles interrompem aos gritos entrevista de uma mulher que cobrava transferência de hospital da mãe com câncer.

Não chega a surpreender que a prefeitura tenha dito que os grupos serviam para "melhor informar a população". Já se tornou comum usar como justificativa para um comportamento ou decisão absurdos exatamente o seu contrário.

No episódio, as estratégias do mundo das redes sociais (gritaria e negação) foram transpostas para a vida real com o propósito de calar críticos e semear o descrédito da mídia tradicional.

Felizmente, a resposta veio em forma de bom jornalismo, com uma bem apurada reportagem, que mostrou imagens dos "guardiões" do prefeito em ação. Interrupções em entradas ao vivo não são uma novidade na televisão, mas feitas a mando de governos e pagas com dinheiro público parecem coisa inédita.

Para fechar a semana, na sexta (4), a Justiça proibiu que a Globo divulgue documentos sigilosos da investigação de que é alvo o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), suspeito de liderar esquema de "rachadinha" em seu antigo gabinete na Assembleia Legislativa do Rio. Se há interesse público, a publicação desses documentos, ainda que passível de críticas, é trabalho da imprensa.

Como a Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) recentemente ressaltou em relação a outro caso (mais uma determinação da Justiça, dessa vez a de que o portal GGN, blog do jornalista Luis Nassif, retire do ar 11 notícias que envolvem o BTG Pactual), "buscar reparação judicial é direito de empresas e cidadãos, mas censurar conteúdo jornalístico fere a liberdade de expressão".

Há algo de muito errado quando a divulgação da imagem de uma praia lotada, o acompanhamento de serviços municipais de saúde ou o direito da população de conhecer detalhes de um esquema de desvio de recursos públicos são atacados com a mesma intensidade, ainda que com instrumentos diferentes.

Em nome de abolir as cobranças feitas em nome do interesse público, vale ameaçar calar a boca, exigir a publicação de notícias positivas, partir para o corpo a corpo intimidatório ou recorrer à censura.

Há um clima geral de intimidação da imprensa, que cresce, se diversifica—e não se restringe ao Brasil.

Começa a ser decidido nesta semana, em Londres, o pedido de extradição aos EUA do jornalista Julian Assange, do WikiLeaks —homem que expôs documentos secretos dos EUA que revelavam desmandos e violações dos direitos humanos.

À parte a figura controversa de Assange, o fato é que os EUA querem julgá-lo com base na Lei de Espionagem e, segundo analistas, há o perigo real de que o direito de receber documentos vazados e publicá-los, sempre em nome do interesse público, sofra um duro golpe.

Criminalizar, calar ou minar a credibilidade da imprensa parece estar na ordem do dia. Certamente não é a primeira vez que isso acontece. Entender o caminho trilhado pelo próprio jornalismo até aqui talvez o ajude a sair dessa.

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