Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

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Descrição de chapéu jornalismo

É melhor já ir pensando em 2022

Trump põe em xeque resultado das eleições e deixa alerta à imprensa brasileira

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Na reta final das eleições americanas, a Folha fez um bom trabalho ao explicar com didatismo as particularidades de um sistema cheio de minúcias e evitar embarcar no favoritismo apontado pelas pesquisas de intenção de voto do candidato democrata, Joe Biden.

Ilustração
Carvall

O processo de apuração dos votos foi marcado por uma progressão lentíssima em quatro estados decisivos e uma incerteza generalizada que, na cobertura jornalística, se manifestou nas três manchetes seguidas do impresso em que a Folha colocou Biden “perto da vitória”. O vaivém das agências noticiosas também não passou despercebido ao leitor.

“Acho que caberia explicação sobre a alteração do número de delegados do Biden. Por que estava 264 e retornou para 253?”, perguntou uma leitora na quinta-feira (5) pela manhã.

A justificativa no site da Folha veio um pouco depois: a AFP, uma das agências de notícias que organizam os dados e projetam o vencedor em cada estado (os EUA não têm um órgão público central que faça isso), decidiu voltar atrás e retirar o Arizona de Biden diante da queda da margem do candidato durante a madrugada.

O evento mais espantoso da semana ocorreu também na quinta, quando o presidente Donald Trump decidiu oficializar a narrativa que vinha construindo havia meses, ao dizer, em pronunciamento, que as eleições foram fraudadas.

Foi um discurso repetitivo de quase 17 minutos, pensado para garantir que, mesmo sem assistir do começo ao fim, a audiência pudesse captar a mensagem principal: os democratas corromperam o processo de votação por meio de cédulas “ilegais”, enviadas "sem controle" pelo correio. Sem elas, a vitória seria dele.

Em reação, a Folha chamou a mentira de mentira: “Em ataque à democracia, Trump mente ao citar fraudes na eleição americana”.

De modo ainda mais surpreendente, pelo menos três dos principais canais da tevê aberta americana interromperam a transmissão no meio do discurso, o que voltou a levantar algumas questões: faz sentido deixar de transmitir o pronunciamento de alguém da importância do presidente dos EUA? Quais seriam as implicações para o jornalismo profissional?

O fato é que Trump, embora seja um mentiroso contumaz, nunca escondeu a estratégia que seguiria caso se sentisse ameaçado de perder as eleições.

Sem provas, criou a história das irregularidades em votos enviados pelo correio (algumas vezes repetida pela mídia sem contextualização), desde que se deu conta de que, em meio à pandemia, eleitores democratas estavam mais propensos a trocar o risco sanitário embutido em longas filas pela alternativa postal.

Sem o voto pelo correio, também parecia mais fácil manter longe das urnas o eleitorado indesejável—a população negra, historicamente de maioria democrata. Não foi à toa que, no discurso, Trump atacou cidades com expressivo eleitorado negro, como Detroit e Filadélfia, chamando-as de centros de corrupção.

A discussão sobre o que fazer em situações como essa não é nova no jornalismo. Para alguns, o que o presidente faz é notícia, mas o que fala pode não ser. Assim, seus discursos ao vivo não precisariam ser transmitidos na íntegra, mas deveriam ser acompanhados por jornalistas que reportariam as notícias que surgissem.

Para outros, as transmissões não devem ser interrompidas, pois o público tem o direito de saber o que Trump e sua equipe articulam.

Estudo do centro de pesquisa de internet da Universidade Harvard sobre a campanha de Trump contra o voto pelo correio indica que o presidente se valeu da mídia para disseminar a desinformação usando três práticas do jornalismo profissional: a noção de que o que o presidente diz é notícia, a busca desenfreada de manchetes pelos veículos de comunicação e o temor da imprensa a ser vista como parcial.

Não acho que tenha sido um pecado capital interromper o show de ofensas de Trump ao sistema eleitoral americano. É preciso cuidado com o precedente aberto? Claro que sim, mas não me parece ruim adotar como regra negar palanque a um candidato sempre que ele, sem que apresente indícios de fraude, não aceitar o resultado de eleições

Ponto importante a ser considerado é que, assim que interromperam o presidente, as emissoras colocaram seus âncoras para explicar que Trump fazia acusações sem provas e que o discurso continha mentiras, imprecisões e reivindicações de vitórias inexistentes.

Dizer que Trump teve a palavra cassada não dá conta do que aconteceu. A rede ABC, por exemplo, interrompeu a transmissão por volta dos 16 minutos, a cerca de 40 segundos do fim do discurso, quando ficou claro que dali não sairia algo relevante.

Alegar censura em um caso como esse seria ignorar que a imprensa escolhe o que publica e, sobretudo, o que não publica ou destaca cotidianamente.

O presidente dos EUA abriu um precedente complexo e não é difícil imaginar que é isso o que nos espera em 2022. A estratégia de Trump deixa um alerta importante sobre os desafios que a imprensa brasileira deverá enfrentar nos anos que restam até as próximas eleições no Brasil.

É melhor já ir pensando nisso.

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