Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

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Flavia Lima
Descrição de chapéu Dia da Consciência Negra

Debate racial requer bem mais que bons modos ou medidas para aliviar culpas

O 'novembrismo' pós-Floyd, caso nos EUA que reposicionou discussão sobre racismo

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A despeito da força das redes sociais, os veículos de comunicação tradicionais mantêm certo poder de conferir relevância aos fatos cotidianos. Sem destaque na mídia, um assunto ainda fica mais próximo do esquecimento.

Em setembro de 2019, a menina Ágatha Félix, 8, foi baleada e morta no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro.

uma grande mão com um dedo apontado para uma pequena figura humana
Carvall

Escrevi neste espaço que a Folha havia perdido a chance de dar o peso devido ao caso, uma vez que negou a manchete do jornal à violência institucional que, como indicam os números, atinge sobretudo negros e pobres, como Ágatha.

Pouco mais de um ano (e muitas mortes) depois, na véspera do Dia da Consciência Negra, o assassinato de João Alberto Silveira Freitas, 40, homem espancado por seguranças do supermercado Carrefour de Porto Alegre (RS), teve melhor tratamento jornalístico ao estampar manchetes em todo o país.

Mas o trágico caminho de Freitas até o alto das primeiras páginas não foi feito sem ajuda estrangeira. O assassinato do americano George Floyd, em maio, reposicionou a discussão sobre raça e racismo no Brasil.

No caso de Freitas, uma questão que facilmente poderia ter sido tratada como um desentendimento entre cliente e seguranças foi compreendida à luz da história e das construções econômico-sociais dela derivadas.

Na cobertura diária, alguns processos que já vinham ocorrendo em velocidade mais baixa ganharam força e o tal “novembrismo” da mídia—a corrida edificante e ineficaz para incluir, no mês da consciência negra, rostos diferentes nas páginas de jornais e nas telas da tevê—transbordou em roupagem mais crítica para os outros meses do ano.

A edição da Folha de 20 de novembro é bem pensada, mas o esforço do jornal em compreender a sociedade na qual está inserido não tem (felizmente) se circunscrito à data.

Nunca se ouviram tantos jornalistas, intelectuais, pesquisadores e professores negros. Uma nova safra de bons colunistas convidados se dispõe a quebrar de vez o monopólio embranquecido da opinião.

De uma forma geral, tornou-se comum a apresentação de indicadores econômicos e sociais que incorporam a raça entre as variáveis fundamentais para compreender as diversas desigualdades no país.

Na política, mesmo que de forma ainda incipiente, as cotas para candidatos que se declaram negros e a eleição de mulheres periféricas têm potencial para transformar as discussões, e os jornais parecem atentos a isso.

Até mesmo as páginas de cultura e de esportes se propuseram a incluir temas mais espinhosos—e aqui faço justiça à Ilustrada, que tem exibido coragem há mais tempo.

Por outro lado, há inúmeros desafios. Sobretudo tevês abriram um espaço maior aos jornalistas negros que já faziam parte de seus quadros (muitas vezes, sobrecarregando-os), mas as parcas contratações não incluem negros.

Outro ponto diz respeito às fontes do jornalismo. De modo geral, dialoga-se com a juventude negra, mas esquece-se de ativistas históricos que se formaram nas décadas de 1970 e 1980 e que são as referências fundamentais para a nova geração. O Black Lives Matter é ouvido, mas não representantes de organizações brasileiras, como a Coalização Negra por Direitos ou a Marcha das Mulheres Negras, reforçando a visão de que os americanos se mobilizam enquanto o Brasil vive de ações isoladas.

Por fim, o jornalismo tem frequentemente utilizado a noção de racismo estrutural, sem necessariamente explorar o seu caráter multidimensional, desidratando o termo pelo uso sem reflexão.

Não adianta abusar da expressão recém-descoberta e, ao mesmo tempo, apresentar a violência contra a população negra como resultado da ação de policiais ou seguranças despreparados, devolvendo o tema à concepção de que o racismo é problema individual ou de alguns grupos. Afinal de contas, dizer que é estrutural é entender que a sociedade não só suporta a prática como também a autoriza.

Não vai ser apenas com bons modos ou com medidas pontuais para aliviar culpas que o jornalismo vai contribuir para o aprofundamento do debate racial. Aliás, tenho dúvidas de que a mídia, de modo geral, queira mesmo ir além disso.

Se a intenção é se propor a pensar o racismo estrutural, terá de discutir reforma administrativa (o serviço público tem papel relevante na formação de uma classe média negra), projetos de desenvolvimento regional (boa parte da população não branca está no Norte e no Nordeste) e direitos trabalhistas (a informalidade afeta desproporcionalmente os negros), além do financiamento à educação e à saúde e dos efeitos da austeridade fiscal sobre essas áreas.

Sem esse debate, a cobertura jornalística corre o risco de esvaziar o discurso e fazer da ode à diversidade a nossa nova “democracia racial”.

É inegável que 2020 foi o ano em que o jornalismo que se diz orientado pelo interesse público foi obrigado a repensar a sua noção de interesse e ampliar a sua concepção do que é público. Páginas mais coloridas são apenas o começo.​

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