Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

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Flavia Lima

Precisamos falar das milícias

Conivência estatal e desatenção da mídia alimentam domínio desses grupos

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Em 19 de setembro, a Folha produziu uma boa reportagem sobre a atuação de milícias no Rio de Janeiro. A matéria indicava que esses grupos vêm adaptando comportamentos para atuar em áreas ricas do Rio e oferecer o que já fazem em bairros periféricos: "proteção".

Com o objetivo de comentar a reportagem em crítica interna, fiz uma busca rápida na internet e, curiosamente, o que apareceu primeiro foi outra matéria da Folha com título bastante semelhante ("Milícia de policiais assedia área nobre do Rio"), porém publicada em dezembro de 2006.

um fuzil em preto e branco; ao fundo uma nuvem
Carvall

Foi então que me dei conta de que os jornais cobrem pontualmente a questão, muitas vezes tratando como novidade um fenômeno antigo, o que contribui para a invisibilidade da questão, seu fortalecimento e incompreensão.

Um mês depois daquela matéria, o tema foi recolocado nas manchetes de todos os jornais a propósito de uma operação feita pela polícia do Rio de Janeiro que resultou na morte de 17 supostos milicianos.

Dias depois, em 19 de outubro, estudo inédito feito por uma rede de pesquisadores deu novo impulso a reportagens, ao mostrar que as milícias controlam 41 dos 161 bairros do Rio de Janeiro, o que corresponde a 57,5% da superfície territorial da cidade e compreende mais de 2 milhões de moradores.

Formadas no início dos anos 2000, as milícias são grupos constituídos por agentes do Estado (policiais e bombeiros), ex-agentes e civis, que controlam territórios por meio de extorsão de todo tipo de taxa a moradores e comerciantes, além de fazerem negócios nas áreas de construção irregular, manejo de lixo, contrabando e tráfico de armas e de drogas.

O domínio das milícias, sobretudo nas comunidades mais pobres do Rio, é assunto tão importante quanto a violência policial ou o tráfico. Portanto, é evidente o interesse público em entender como operam e de que forma as autoridades constituídas lidam com a questão.

Não é de hoje que a imprensa tenta abordar o fenômeno, com jornalistas experientes dedicados ao tema, em especial no Rio de Janeiro.

As eleições municipais também costumam trazer o assunto de volta ao debate, dado que é cada vez mais evidente a influência dos grupos paramilitares sobre vereadores e prefeitos das regiões que controlam.

Muitas vezes, no entanto, essa cobertura é feita de forma intermitente e, pior, sob risco.

Em maio de 2008, repórteres do jornal O Dia foram mantidos em cárcere privado e torturados por mais de sete horas quando preparavam uma série de reportagens sobre a atuação de milicianos na favela do Batan, na zona oeste do Rio.

Dez anos depois, milicianos foram apontados como responsáveis por matar a vereadora Marielle Franco, em uma demonstração de que nem imprensa, nem governos, nem polícia e Forças Armadas são obstáculos para um grupo que só se expandiu e se fortaleceu.

Há inúmeros desafios nesse tipo de cobertura. Um deles é que, para levá-la adiante, jornalistas dependem das fontes da polícia, um complicador em casos que envolvem quadros da própria polícia.

É comum que repórteres acabem reproduzindo o olhar punitivo das suas fontes do Judiciário, do MP ou da polícia, sem muita reflexão.

Muitas vezes também, os jornais se deixam pautar por operações vistosas, que certamente rendem publicidade aos chefes de polícia de ocasião, mas não atingem os modelos de negócio desses grupos, fazendo apenas com que troquem de mãos.

Por fim, esse tipo de corrupção das forças do Estado (reforço aqui a palavra corrupção) não deveria ser assunto exclusivo das editorias policiais—mas também de política.

Em entrevista ao Globo, o jornalista e pesquisador Bruno Paes Manso disse que é impossível pensar nos domínios exercidos por milicianos sem a conivência de batalhões, delegacias e políticos e, acrescento, a pouca atenção da mídia.

Paes Manso lembrou também, em artigo para a Folha, que o hoje presidente Jair Bolsonaro e seus filhos são defensores de longa data da violência fardada, inclusive da miliciana, próximos que sempre foram de figuras como o ex-PM Adriano da Nóbrega, que teve a mãe e a ex-mulher empregadas em gabinetes da família e que trabalhava, segundo depoimento, para um bicheiro quando foi homenageado por Bolsonaro.

Na leitura de Paes Manso, a eleição de Jair Bolsonaro marcou o fim da Nova República para inaugurar a imprevisível república das milícias.

Se isso é verdade, não dá para voltar a se dedicar ao tema daqui a outros dez anos, sob risco de nos depararmos sabe-se lá com que país.

É uma cobertura à qual a imprensa que se diz nacional precisa prestar mais atenção, dedicando mais tempo e investimento ao assunto, dando visibilidade a ele e fomentando o debate.

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