Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Flavia Lima

Sensacionalismo na pandemia

Título maior que a notícia atrai cliques, mas desinforma e frustra leitores

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Duas reportagens publicadas no site da Folha na última terça (22), evidenciaram novas dificuldades da cobertura da pandemia.

Vaticano permite o uso de vacinas contra Covid-19 feitas com tecido de fetos abortados” era a chamada para um texto, originalmente da Reuters, sobre comunicado do Vaticano aos católicos que discorria sobre a moralidade do uso de vacinas contra a Covid-19.

Na ilustração, um jornal está pendurando num varal secando
Carvall

"Olavo virou repórter da Folha?”, resumiu um leitor, em referência a Olavo de Carvalho, que já criou confusão ao acusar uma marca de refrigerante de usar como adoçante células de fetos abortados.

Faltou no jornal a percepção de que a associação de palavras como vacina, feto e aborto, em geral, compõe a narrativa de grupos que buscam misturar ciência e fé com o objetivo de desacreditar a primeira.

Em uma prova de que era possível ter feito diferente desde o princípio, no dia seguinte o jornal refez o título (“Após crítica de grupos antiaborto, Vaticano defende uso de vacina contra Covid”) e reformulou o texto, bem superior ao original.

“A primeira reportagem foi publicada com menos contexto do que o desejável, e a segunda versão melhorou a compreensão”, diz a editora-adjunta de Mundo, Beatriz Peres.

O tempo entre uma versão e outra, porém, ajudou a minar esforços de cientistas para esclarecer que vacinas não são feitas de fetos abortados e serviu para que o maior jornal do país emprestasse a sua credibilidade aos grupos antivacina.

“Eles [a Folha] escancaram que dentro das vacinas existe isso... além de fetos humanos, restos animais e outros metais e várias coisas”, disse, em vídeo publicado nas redes, um representante de um desses grupos.

Ainda que não houvesse erro algum no que foi publicado, o sensacionalismo da chamada é suficiente para causar estragos. Além disso, especialistas ouvidos pela coluna reforçam que não se trata de “tecidos de fetos abortados”, mas de linhagens celulares derivadas de células embrionárias desenvolvidas a partir de dois fetos abortados legalmente há décadas.

Os especialistas afirmam também que não existem células embrionárias nos imunizantes: as células são usadas para cultivar o vírus, que depois vai ser isolado, purificado e usado na formulação vacinal.

Outro ponto é que o Vaticano já se manifestou antes sobre vacinas, em 2005. O retorno ao tema parece ser mais uma tentativa de diálogo com fiéis radicais.

Por fim, a Folha não lê a Folha, que publicou há cinco meses texto que desmentia tuíte que falava de vacina e bebês.

Na mesma terça-feira, uma segunda matéria dizia que camelôs vendiam vacina falsa contra Covid-19 por R$ 50 em Madureira, zona norte do Rio de Janeiro.

Não seria de todo inesperado algo do tipo em locais de grande aglomeração. Ocorre que a apuração da Folha tinha (tem) problemas, tanto que o texto ganhou três versões, a última delas seguida de um ‘Erramos’ explicando que a mudança (“Anvisa e PF apuram venda de vacina falsa após relatos”) refletia melhor o teor da reportagem.

O maior dos problemas foi ter sido ancorada em depoimento de uma única fonte (um produtor cultural), que primeiro viralizou nas redes sociais. Mas outras evidências também parecem ser frágeis.

Reportagens feitas a respeito trazem o mesmo produtor como fonte. Na versão atualizada do texto, a Folha diz que ao menos outros três moradores do bairro dizem ter visto ou recebido a oferta da vacina, mas não detalha os depoimentos, o que enriqueceria a matéria.

Há também dúvidas sobre a origem da única foto da suposta vacina, que teria sido tirada pelo produtor cultural.

Na imagem, a caixa de vacina é da chinesa Sinopharm, não testada no Brasil. Após pesquisa, a agência de checagem E-farsas diz que há indícios robustos de que a foto foi tirada em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, em evento promovido por uma empresa local, em 11 de dezembro.

O editor-chefe da E-farsas, Marco Faustino, conversou com funcionários da empresa, que confirmam o evento e reconhecem o fundo da foto —o chão do ginásio.

Além disso, diz Faustino, outro indício de que a foto não foi tirada pelo produtor ouvido pela Folha é que ela já circulava na internet pelo menos um dia antes de ser publicada por ele.

Sobre o caso, a editora de Cidades da Folha, Luciana Coelho, diz que a repórter ouviu duas pessoas por telefone e colheu outros dois relatos por redes sociais, e afirma que ela não foi ao local da venda porque, “segundo os relatos, o episódio não estava ocorrendo naquele momento”. A CNN foi.

“A menos que uma reprodução da mesma foto com publicação anterior ao episódio venha à tona, ela será mantida na reportagem”, diz Coelho.

Amplificados pela imprensa, casos como o de Madureira ou o do Vaticano legitimam outras agendas, além de colocarem em xeque a credibilidade dos veículos de comunicação.

Do jornalismo, espera-se que evite o sensacionalismo, saiba filtrar o barulho das redes sociais e reconheça os seus erros, que, afinal de contas, fazem parte do processo. Do contrário, presta um desserviço à sociedade e ainda corre o risco de “passar vergonha”, como disse um leitor.​

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.