Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

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Flavia Lima

Ainda a hidroxicloroquina

Jornal reestimula controvérsia onde não existe e colhe punhado de cliques

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Na terça-feira (29), a Folha publicou na página 3 do jornal impresso, na seção Tendências / Debates, o texto “A imprensa e a hidroxicloroquina”, que se propôs a discutir a cobertura sobre o medicamento.

No texto, argumenta-se que, embora não se saiba se a hidroxicloroquina tem ou não eficácia contra a Covid-19, a falta de ceticismo afetaria a cobertura do tema pela imprensa, que, no esforço para fortalecer o discurso de que a cloroquina não funciona, cometeria uma série de erros.

Ilustração de caneta bic partida ao meio, com a tinta vazando
Carvall

“Enfim um pouco de sensatez no debate do que devia ser uma questão técnica", disse um leitor. "Como Trump falou bem da droga, a imprensa ficou contra”.

É curioso que o artigo aponte como exemplo problemático uma reportagem da Folha de agosto (“Site faz placar de pesquisas pró e contra uso de cloroquina”), que apresenta todos os elementos de que o autor diz sentir falta na cobertura.

Além de ouvir sete especialistas com avaliações diversas sobre os estudos de eficácia do medicamento, a matéria é recheada de recomendações similares às sugeridas pelo autor em seu texto: que estudos devem ser lidos com uma dose de ceticismo, que é preciso tirar a política do debate científico e que a discussão sobre a eficácia das drogas contra a Covid-19 está longe de acabar.

Mais do que discutir o conteúdo em si, vale tentar entender o que levou a Folha a publicar, a esta altura, um texto que, ao tentar fazer o exercício saudável de criticar a cobertura jornalística, volta a embolar o debate sobre a cloroquina.

Já abordei o assunto em uma de minhas colunas. Um dos alertas que fiz naquele momento, meados de abril, era que a Folha corria o risco de embarcar na canoa furada da fórmula de opor “um texto a favor, outro contra”, o que, por se tratar de um medicamento, poderia pôr em risco a saúde de muitos.

Por que recorrer novamente à fórmula?

Como perguntou um leitor, cabe dar publicidade à opinião que contraria o consenso da comunidade científica em um momento tão confuso e dramático? A pluralidade justificaria a publicação?

O artigo enxerga erro onde ele não existe. Em resposta ao texto, o editor-chefe da revista Questão de Ciência, Carlos Orsi, afirmou em artigo também publicado na Folha que, hoje, a incerteza quanto à ineficácia da hidroxicloroquina contra a Covid-19, em qualquer fase da doença, é irrelevante o suficiente para que a imprensa possa tratar essa ineficácia como comprovada, sem medo de estar prestando um desserviço ao leitor e à saúde pública.

Quanto à pluralidade, é certo que há debates científicos que se opõem ao consenso e que, trazidos a público, estimulam o livre pensar. Quando o que está em jogo é a saúde pública, porém, o dissenso merece tratamento mais cuidadoso.

Além disso, a decisão de publicar qualquer texto usando a pluralidade como justificativa é apenas parte da história. A outra é que nem todo artigo de opinião é aceito para publicação na página 3 do jornal. Uma vez lá, no entanto, o selo conferido à mensagem sugere que ela é digna de entrar no debate público—o que nem sempre é verdade.

Muitos leitores me mandam textos para publicação e encaminho as sugestões para a seção Tendências / Debates ou para a editoria correspondente.

Para ficar em um exemplo mais recente, o ex-ministro Aloizio Mercadante pediu (e não levou) espaço para questionar a reportagem cujo título nas redes foi "Década colocou os negros na faculdade, e não (só) para fazer faxina”, e cuja façanha é não mencionar, em nenhum momento, que a Lei de Cotas foi aprovada no governo Dilma Rousseff.

O texto sobre a cloroquina foi mandado à ombudsman e encaminhado à seção Tendências / Debates. Teve mais sorte.

A decisão sobre o que é publicado na seção Tendências / Debates cabe à editoria de Opinião, ouvida a Direção de Redação. Entre os critérios para a escolha estão qualidade do artigo, relevância e oportunidade do tema e representatividade do autor—fatores que tornam a publicação do texto ainda mais intrigante.

Um dos grandes temas de 2020 foi o coronavírus, e a cobertura jornalística feita sobre ele teve bem mais acertos do que erros.

Se algo novo for descoberto em relação à eficácia de medicamentos contra a Covid-19, não tenho dúvidas de que a imprensa seguirá o achado de perto. Até lá, oferecer uma das maiores vitrines da Folha para um texto pouco esclarecedor parece uma tentativa de reestimular a controvérsia onde ela não existe e de colher mais um punhado de cliques.

*

Sobre a coluna da semana passada, o texto "Sensacionalismo na pandemia", a editora de Cidades da Folha, Luciana Coelho, diz o seguinte: “ A repórter ouviu duas pessoas por telefone e colheu outros dois relatos por redes sociais, um dos quais a autora confirmou por mensagem (a outra pessoa não respondeu à tentativa de contato). Ouviu também a PM, a Polícia Civil e a Anvisa, por mensagem e email. A checagem da foto não mostra que ela foi tirada no exterior—as agências de checagem usam uma foto diferente para fazer a mesma afirmação, com mão feminina e outro fundo. Como a suspeita é a de que a vacina em questão seja contrabandeada, o fato de as caixas serem iguais não permite inferir que a foto tenha sido tirada fora do Brasil. A busca reversa de imagem só atribui à foto o contexto descrito pela reportagem. Foi, sim, verificado um erro no título inicial, que não atribuía às fontes a afirmação. Ele foi corrigido com publicação de erramos”.

Aproveito para desejar um 2021 melhor para todos. Entro em férias e volto em fevereiro.

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior desta coluna errou ao afirmar que o texto enviado à ombudsman pelo ex-ministro Aloizio Mercadante foi encaminhado à seção Tendências / Debates. Na verdade, os destinatários foram os três editores do especial "Todo ano um 7 a 1 diferente" e a Secretaria de Redação. ​

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