Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

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Flavia Lima

Novo jornal para a metrópole

Ombudsman analisa primeira edição da Folha como se estivesse em 1921

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No sábado (19), a cidade de São Paulo ganhou um jornal vespertino, a Folha da Noite.

 Primeira página da primeira edição do jornal Folha da Noite de 19 de fevereiro de 1921, atualmente conhecido como Folha de S.Paulo
Primeira página da primeira edição do jornal Folha da Noite de 19 de fevereiro de 1921 - Folhapress

Em 8 páginas, o número de estreia destacou já na primeira o assunto mais relevante da semana: as eleições para a legislatura estadual, que ocorreram no dia seguinte.

Para a bancada de São Paulo, a comissão diretora do PRP (Partido Republicano Paulista) indicou à reeleição os congressistas da última legislatura.

Representando a oposição, o jornal entrevistou dois médicos, que levantaram questões que têm preocupado os paulistanos, como o voto de cabresto —uma “vergonha calamitosa da época que atravessamos” e que “não se restringe ao Norte do país”, diz um dos doutores.

O que deveriam ser entrevistas, porém, mais parecem monólogos. Cadê os jornalistas? Por que perguntaram tão pouco? Suas indagações ajudariam a entender melhor os problemas de uma eleição marcada por um processo de votação pouco confiável, mesmo após mais de 30 anos de República.

O jornal voltou ao assunto na página 2, em textos que oscilam entre notícia e opinião. De modo surpreendente, o PRP não foi ouvido.

O que se espera de um jornal novo e arejado como a Folha da Noite, porém, é que supere o estilo panfletário, em voga até alguns anos atrás, e que entre definitivamente no século 20.

Afinal de contas, o tempo de a imprensa construir palanques contra ou a favor acabou. Ou não? Em outros países, há bons debates a esse respeito.

Nos Estados Unidos, por exemplo, existem discussões sobre a importância de bons jornais separarem conteúdo noticioso e opinativo em nome da transparência.

Por lá, existe a ideia de se fazer uma espécie de código de boas práticas —uma espécie de manual—, algo que pode servir de inspiração à imprensa local, à Folha em particular.

Outro texto que chamou a atenção —tenho dúvidas se é possível encará-lo como uma reportagem— é o que descreve o relatório de atividades da Associação Comercial de São Paulo do ano passado.

O texto reproduz os quase 50 títulos de cada capítulo do relatório, sem que o leitor conheça o conteúdo do documento. Como foi o ano para os comerciários e por que é importante que se obtenha mais detalhes sobre isso? Não sabemos.

O jornal ainda se congratula pelo “furo” ao obter o relatório. Para as próximas edições, o leitor espera um melhor entendimento do que é o furo jornalístico —certamente não é receber com exclusividade um documento e deixar de explorar seu conteúdo.

Entre as notícias internacionais, há uma tradução do New York World sobre a nomeação do novo secretário de comércio americano, Herbert Hoover, o que mostra que a Folha está de olho nas figuras em ascensão na política americana.

Outras parcerias com agências telegráficas, no entanto, podem tornar a cobertura mais interessante.

O jornal traz bons serviços —como a reportagem sobre a construção de um mercado de peixe na Cantareira. Falta uma seção feminina, tendência do novo século e que pode atrair as leitoras para a Folha.

Em uma das matérias que abordam o cotidiano, o texto sobre o “pobre rapaz de cor” de 15 anos encontrado morto no rio Tietê merecia mais empenho. Não há interesse em saber o que aconteceu? Não valeria a pena seguir o caso?

A extensa cobertura de esportes é um ponto alto, com atletismo, remo, aviação, uma interessante tradução do relato de um halterofilista francês e uma excelente seção de turfe. Se até a década passada o que se via na imprensa era um ensaio de jornalismo esportivo, o primeiro número da Folha da Noite mostrou que é possível inovar nesse sentido.

O jornal também promete publicar capítulos do futuro livro de Monteiro Lobato, “As Fábulas de Narizinho”. A ideia de apresentar ao leitor trechos de um livro é interessante. A ver se a moda pega. Tenho dúvidas, porém, se um livro infantil tem potencial para estimular muitas discussões.

No mais, há esforço do jornal para se mostrar mais leve e arejado em contraste com a sisudez da concorrência. Vale ter cuidado para não se perder na graciosidade exagerada em detrimento do conteúdo.

Estava mais do que na hora de uma metrópole de quase 600 mil habitantes contar com um jornal urbano e popular, ágil e diversificado. Como diz um professor de prestigiosa faculdade paulistana, a qualidade jornalística vem como consequência do exercício da liberdade, não o contrário. Vida longa.

Este foi um exercício de produzir uma crítica de um jornal que não contava com um ombudsman e, se contasse, não teria alguém como eu a ocupar a função. O esforço foi menos de avaliar com o olhar atual um periódico feito há 100 anos (o que não faria sentido), e mais de ilustrar o caminho percorrido e ajudar a imaginar para onde vamos a partir daqui.

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