Glenn Greenwald

Jornalista, advogado constitucionalista e fundador do The Intercept

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Lei contra fake news de Lula serviria para Bolsonaro perseguir inimigos

Você pode estar confortável com regra nas mãos de líderes em que confia, mas não sabe como será usada no futuro

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Dez dias antes do segundo turno das eleições de 2018, este jornal informou que uma "prática ilegal" estava sendo utilizada para ajudar a eleger Jair Bolsonaro à Presidência. "Empresas estão comprando pacotes de disparos em massa de mensagens contra o PT no WhatsApp", explicou a Folha.

Bolsonaro não só negou a história como acusou tanto o jornal quanto o PT de espalhar notícias falsas. Como a Folha observou, "o PSL deve processar Haddad".

O ex-presidente Jair Bolsonaro durante evento em resort na Flórida, nos EUA - Joe Raedle - 3.fev.23/Getty Images via AFP

Ao vencer a eleição para a Presidência, não havia lei disponível para Bolsonaro —similar àquela que o governo do PT está propondo agora— que permitisse ao seu governo ou a juízes simpáticos a ele proibir a discussão online da matéria da Folha por se tratar de "notícia falsa". Mas, se ele tivesse esse poder —se a lei que o PT espera implementar para combater "notícias falsas" estivesse nas mãos dos aliados de Bolsonaro—, é muito razoável suspeitar que eles a teriam usado para suprimir essas revelações, alegando que eram falsas.

A nova lei proposta pelo governo Lula daria mais poder tanto ao Judiciário quanto à AGU (Advocacia-Geral da União) para tomar medidas mais agressivas contra as "notícias falsas" online. Entre outros novos poderes, a lei proposta permitiria "uma atuação da AGU, órgão que representa o governo juridicamente, de ingressar com representações judiciais contra aqueles que veja como autores de conteúdos mentirosos".

Em uma entrevista à Folha em 19 de janeiro, o ministro-chefe da Secom (Secretaria de Comunicação Social da Presidência), Paulo Pimenta, prometeu: "Vamos passar a responder de forma mais contundente, mais aguda, a informações que distorcem, são equivocadas".

Todos adorariam viver em um mundo em que um poder onipotente e benevolente permitisse apenas afirmações verdadeiras, identificando e suprimindo todas as alegações falsas. Tal mundo parece ser um paraíso: sem erros, apenas verdade. Quem poderia se opor a isso?

Infelizmente, a natureza humana torna esse mundo impossível, e achar que líderes ou instituições humanas serão capazes de possuir tais poderes é extremamente perigoso.

Os humanos já tentaram isso antes. Durante mil anos antes do Iluminismo, a maioria das sociedades europeias era governada por instituições onipotentes —monarquias, impérios, igrejas— que afirmavam possuir a verdade absoluta e, portanto, proibiam qualquer visão divergente, alegando serem falsas.

A inovação fundamental do Iluminismo, um dos maiores avanço intelectuais pela libertação humana, foi reconhecer que todas as instituições humanas são passíveis de falha, endossam afirmações falsas por erro ou por interesse e que todo indivíduo deve sempre reter o direito de questionar e desafiar suas ortodoxias.

Em resumo, não existe nenhuma instituição de autoridade que possa ser confiável para decretar o que é a verdade. Hoje, sabemos que as sociedades indígenas mais antigas, distantes da Europa, já haviam internalizado essa lição, tendo descartado a fé em autoridades centralizadas e nos próprios líderes em favor de um poder descentralizado e de valores democráticos dispersos.

Como apenas um exemplo, a OMS (Organização Mundial da Saúde) anunciou em fevereiro de 2020 que nenhuma pessoa assintomática deveria usar máscaras e que isso poderia piorar a Covid. Em abril, a recomendação era a oposta: todos deveriam usar máscaras. Em 2018, qualquer "fact-checker" teria afirmado que Lula era um ladrão, já que ele estava condenado nos tribunais brasileiros; em 2022, a situação se inverteu.

Se essa lei for implementada no Brasil, não será a primeira vez que um governo é autorizado a coibir "notícias falsas" na internet. Há, em vários países, governos que têm o poder de banir conteúdos que o Estado considera perigosos, falsos, incitam violência ou promovem instabilidade social ou até mesmo revoluções contra a ordem vigente.

Regimes com tais leis são os mais despóticos do planeta: Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Egito, Cingapura e Qatar (cuja lei, 'Crimes contra a segurança interna do Estado', permite que o Estado "imponha até cinco anos de prisão a quem espalhar rumores ou notícias falsas com má intenção"). Lá, o resultado é previsível.

Toda dissidência contra o governo e seus líderes é rotulada como falsa ou perigosa ou incita o terrorismo e é censurada com base nisso. Em relação à Turquia, a ONU, em maio passado, "manifestou preocupação após o voto pelo parlamento turco de uma lei que poderá implicar a prisão de até três anos de jornalistas e utilizadores dos 'social media’ pela difusão de 'notícias falsas'."

Esses abusos promovidos por leis de "fake news" ocorrem lá, não porque esses países são diferentes, mas porque são iguais. Todos os líderes poderosos, mesmo os bem-intencionados, estão sujeitos à tentação humana de proibir a dissidência sob o argumento de que é perigosa ou falsa.

Por isso, não surpreende que a maior parte dos especialistas consultados pela Folha sobre a resolução do TSE aponte "que uma atuação, nesse sentido, por parte do governo pode abrir um precedente que represente risco à liberdade de expressão, diante da possibilidade de ser instrumentalizada para assédio judicial contra críticos e opositores".

Mesmo que você tenha a sorte de ter encontrado os líderes mais confiáveis e benevolentes da história, de alguma forma capazes de decretar a verdade sem errar e que usem tais leis apenas de maneira nobre, em algum momento outros líderes serão eleitos e eles também terão esses poderes.

A questão para qualquer lei não é se você está confortável com ela nas mãos de líderes de que gosta e em que confia, mas como ela será usada por líderes diferentes.

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