Gregorio Duvivier

É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos.

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Gregorio Duvivier
Descrição de chapéu

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Que saudade de reclamar da tomada de três pinos

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Tenho tido uma saudade enorme de falar de outra coisa. Não sei se vocês se lembram, mas tinha um tempo em que a gente não falava o tempo inteiro disso. Havia quem falasse de novela —uma espécie de série que tinha na nossa época, mas você tinha que ver na hora que passava, a não ser que gravasse para ver depois. Havia quem preferisse futebol —era por isso que as pessoas brigavam, na nossa época. “Foi pênalti”, dizia um. E o outro berrava que não tinha sido pênalti, e parece bobo, mas podia durar horas. 

Tenho tido saudade de quando o país estava dividido por outras coisas. Tucanos e petistas. Biscoito ou bolacha. Tangerina ou mexerica. Feijão em cima ou embaixo do arroz (ao lado, diziam os isentões). Havia quem brigasse porque achava que um vestido era verde e dourado, quando era azul e preto —mas talvez fosse o contrário.

Tenho tido uma saudade enorme de ficar puto com outras coisas. Quando criança a gente ficava puto com o Bis sabor laranja ou com uma figurinha repetida no chocolate Surpresa. Não faz tanto tempo que eu estava revoltado com a abundância de certos pokemons, em detrimento de outros. “Maldito Zubat!”, eu gritava pelas ruas.

Ilustração
Catarina Bessel/Folhapress

Tenho tido saudade de ficar triste por outros motivos. Chorava com aquele filme iraniano em que o garoto perde o único par de sapatos. Hoje em dia penso —“sortudo de merda, ainda tem as calças”. Chorei no primeiro “Rei Leão”, quando morria o Mufasa. Hoje em dia fico feliz por ele, que não merecia assistir a essa sacanagem toda. 

Tenho tido saudades de perder o sono por causa de outras coisas. Um vizinho fazendo obra, meu time sendo rebaixado, meu time sendo rebaixado outra vez, meu time perdendo na reta final da Libertadores. Que delícia passar a noite em claro por causa de uma dor de dente, de cabeça, de cotovelo. 

Tenho tido saudade de falar mal do PT, da Folha, do Globo, da Globo, do professor tucano, do tio neoliberal. Tenho tido saudade de quando o apocalipse era um capítulo delirante da Bíblia e não um programa de governo. Tenho tido saudade de quando Armaggedon era só um filme ruim. 

O paraíso, para mim, é um lugar em que a gente volta a reclamar do tempo que não firma. Do novo acordo ortográfico. Da gentrificação. Do Romero Britto, do Jorge Vercillo. Do surto de paleterias. Da tomada de três pinos. Ah, que saudade de reclamar da tomada de três pinos.

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