Gregorio Duvivier

É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos.

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Gregorio Duvivier

A guerra às legendas é a mãe de todas as guerras

O cinema ensina que nenhum povo é terrorista

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“Quando vocês romperem a barreira da legenda”, disse o diretor Bong Joon-ho, “vocês vão conhecer tantos filmes bons”. É que 93% dos americanos se recusam a ver um filme legendado. Não me perguntem a fonte dessa porcentagem, acabei de inventar. Mas chutaria que é por aí, pela bilheteria dos filmes estrangeiros nos EUA.

O ódio do americano às legendas pode ser medido pela quantidade de remakes no mercado. Hollywood chega a gastar cem milhões de dólares pra refilmar um longa perfeitamente filmado só porque sabe que o público americano não suporta ver e ler ao mesmo tempo. Não importa que o remake fique quase sempre pior que o original, nem que quase sempre tenha o Nicolas Cage. 

Não sabem o que estão perdendo. Acho injusta a fama do cinema iraniano de chato e hermético. Pode confiar em mim: tenho uma tolerância baixíssima pra cinema chato.

Larguei a faculdade de cinema no meio depois que passaram pela terceira vez “Terra em Transe” —na mesma semana. Acho o cinema novo uma experiência sensacional— assim como acho sensacionais as experiências de Marie Curie com urânio. Isso não quer dizer que eu queira presenciá-las. 

O primeiro filme iraniano que vi foi “Filhos do Paraíso” —aos 11 anos, a contragosto. O título parece novela das seis, e eu queria muito assistir a “Men in Black”. Nunca serei suficientemente grato a meu pai por ter me obrigado a acompanhá-lo.

Colagem com foto de Gregorio Duvivier dentro de um barco feito de formas geométricas no mar
Catarina Bessell/Folhapress

No filme, o menino Ali, muito humilde, leva o único par de sapatos da irmã Zahra pra consertar —mas perde o par dela no caminho. Pra não ser punido pelo pai, passa a revezar seu único par de sapatos com a irmã— ninguém na escola pode perceber, senão levam uma surra em casa. Surge uma competição de corrida onde um dos prêmios é um par de sapatos. Tudo o que ele precisa é chegar em terceiro lugar. Não vou contar pra vocês o final, mas posso garantir que quem não chorar está morto por dentro.

“Tartarugas Podem Voar” se passa num acampamento de crianças mutiladas por bombas. Lideradas por um menino chamado Satélite, vivem de desarmar minas terrestres e revendê-las pra comerciantes. “A Maçã” conta a história real de duas irmãs gêmeas, Massoumeh e Zahra, trancadas em casa por um pai fanático e uma mãe cega. 

Qualquer pessoa que assistiu a algum desses filmes não consegue ver com bons olhos o bombardeio do Irã. Um americano médio, alimentado pela Fox News, talvez pense que, na guerra vindoura, morrerão ditadores sanguinários, terroristas homofóbicos, terríveis homens-bomba. 

Quem morre numa guerra é o povo. E o cinema ensina que nenhum povo é terrorista.

Se Trump tivesse visto, na vida, algum filme legendado, saberia disso. Se o americano médio assistisse a filmes legendados, saberia que quem vai morrer é o Ali, é a Zahra, é o Satélite, é a Massoumeh. Não consigo parar de pensar neles.

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