Gregorio Duvivier

É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos.

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Gregorio Duvivier
Descrição de chapéu Coronavírus

Essa coisa de presenciar momentos históricos é muito cansativa

Queria combinar com você uma coisa: vamos sair dessa pandemia de mãos abanando?

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Vão nascer grandes obras de arte nesta quarentena, disseram. Os escritores vão sair desse confinamento com uma epopeia debaixo do braço, os músicos terão composto sinfonias. Acabaram as distrações, acabou a mamata.

Colagem com foto de Gregorio Duvivier deitado na cama vestindo cama vermelha e coroa. Ele segura o livro King Lear nas mãos
Catarina Bessell/Folhapress

Shakespeare escreveu “Rei Lear” na quarentena, lembraram. E eu, que nem li “Rei Lear”, fiz a nota mental —nesta quarentena preciso, pelo menos, ler “Rei Lear”. E estudar trombone, e aprender russo, e ler partitura, e ler “Rei Lear”em russo, e fazer tortas. Vou fazer desse limão um cheesecake vegano. Aguardem.

Não sei vocês, mas lá se vão 20 dias de confinamento e tudo o que eu fiz até agora foi contar a mesma história para a minha filha e participar de videochamadas e, entre uma coisa e outra, eu vi memes. Acho que na época de Shakespeare não tinham videochamadas, nem memes, nem filhos.

Às vezes tiro cinco minutos para ler as notícias e então um turbilhão atravessa minha cabeça e começo a ver o Brasil dentro de um caixão carregado por quatro homens que dançam ao som de música eletrônica, e 200 milhões de pessoas estão dentro do caixão, e a música não sai da minha cabeça.

Essa coisa de presenciar momentos históricos é muito cansativa —diz um meme, ou talvez tenha sido Shakespeare. Já não sei mais o que é arte ou o que é meme. Não sou eu nem sou o outro —diz o meme— sou qualquer coisa de intermédio. Acho que isso foi Mário de Sá Carneiro, ou algum outro Mário, de sacanagem.

À noite ponho a cabeça no travesseiro e conto as poucas horas que faltam para a minha filha acordar —e me pergunto se nessas poucas horas eu não deveria tentar escrever o grande romance da minha geração, e daí não consigo dormir, e menos ainda escrever, porque fica difícil escrever um romance quando você não consegue nem ler um romance, e fica difícil ler um romance quando você não consegue terminar um conto, e fica difícil ler um conto quando o mundo que você conhece acabou, e ninguém sabe o que pode vir depois disso.

Decidi que não vou produzir nada. O mundo não precisa de mais livros —certamente não de um livro meu. Minha filha vai precisar, daqui a pouco, de um pai acordado.

Caro leitor, meu semelhante, meu irmão, estamos na mesma. Queria combinar com você uma coisa: vamos sair dessa pandemia de mãos abanando?

Se serve de consolo, Shakespeare deve ter sido um pai merda.

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