Gregorio Duvivier

É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos.

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Gregorio Duvivier

Devemos olhar a verdade: a mãe da Chapeuzinho só quer que ela morra

Tenho me isolado mais em posição vertical mesmo, geralmente correndo atrás da minha filha de dois anos

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Tenho visto com muita inveja gente aproveitando o confinamento para ver séries e filmes e ler livros. Por aqui, a quarentena coincidiu com o fechamento da creche, de modo que não consegui fazer o isolamento horizontal. Tenho me isolado mais em posição vertical mesmo, geralmente correndo atrás da minha filha de dois anos.

Colagem com o rosto de Jari Bolsonaro em um corpo de bruxa. Ela leva uma cesta cheia de vírus. Na frente, uma menina negra vestida de Chapéuzinho Vermelho
Catarina Bessell/Folhapress

A única série que estou acompanhando é a “Coleção Disquinho” —mais precisamente o episódio da Chapeuzinho Vermelho, mais precisamente umas 30 vezes por dia, o que me permite atentar para minúcias até então despercebidas.

Um breve resumo, para quem não tem a história fresca. A mãe de Chapéu (a intimidade me permite chamá-la assim) manda que a filha entregue doces à sua avó doente, mas adverte: “Vai pela estrada do rio. O caminho da floresta é muito longo e sombrio, o Lobo Mau anda lá devorando as criancinhas”. Eis que, na estrada do rio, o lobo, disfarçado de anjo, sugere que ela vá pelo caminho da floresta, porque o lobo andaria agora pela estrada do rio. Chapéu obedece, o lobo corre para a casa da avó, e o resto vocês já sabem.

Não sei se notaram, mas errada estava a mãe. Ao contrário do que disse à filha, o lobo estava na estrada do rio —caso contrário Chapéu não teria encontrado ele. O pecado da criança não foi desobedecer à mãe, mas seguir suas instruções.

Se tivesse ido pela floresta, não teria encontrado lobo algum.

E mais: se existe um lobo à solta, e a mãe sabe disso, qual o sentido de mandar sua filha passear pela estrada afora, “bem sozinha”? E pelo caminho errado! E pior: para levar doces, e não remédios, biscoitos funcionais, canja, vitamina C ou tantas coisas mais úteis a uma idosa doente. Precisava arriscar a vida da filha para entupir a mãe de glicose?

Só há uma conclusão a tomar quanto à mãe de Chapeuzinho: ela queria se ver livre da filha. E, quem sabe, da avó também. Talvez estivesse inclusive mancomunada com o lobo. A mãe é o lobo do homem. Não fossem os caçadores, teria conseguido se ver livre de toda a população inativa da sua família.

Ao ler os jornais ou ligar a TV, só consigo pensar na Chapeuzinho e na sua moral implícita: quem finge proteger você pode estar querendo matar você. Um presidente que manda a população sair às ruas no meio de uma pandemia só pode estar querendo se livrar dela. A única saída, para a Chapeuzinho e para a gente, é a desobediência.

“Vou ficar em casa, mesmo, mãezinha. Já a senhora pode ir para o inferno, com todo o respeito. E enfia esses doces no rabo, que a vovó é diabética.”

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