Gregorio Duvivier

É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos.

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Gregorio Duvivier

Mora na filosofia: pra que chamar de mesquinho o sonho?

'Mora', no caso, é aquela gíria da malandragem carioca que encerrava a propaganda das Óticas do Povo: 'Morou? Ha-hai!'

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Mora na filosofia, diz o samba de Mestre Monsueto e Arnaldo Passos, pra que rimar amor com dor?

Achava bonita essa ideia de morar na filosofia, como se fosse um bairro. Confesso que só atinei outro dia pro significado real, num tuíte perplexo do colega de geração Mateus Baldi. “Mora”, no caso, é aquela gíria da malandragem carioca que encerrava a propaganda das Óticas do Povo: “Morou? Ha-hai!”. Em português millenial: “se liga na filosofia: pra que rimar amor com dor?”.

Sei que pra velha guarda isso é óbvio, mas arrisco dizer que a informação surpreenderá a totalidade dos leitores que partilham comigo a dor e a delícia de ter nascido mais pro final do século 19, após o ocaso da gíria “mora” —e da moral e da moralidade.

Ilustração para coluna de Gregorio Duvivier
Catarina Bessell/Folhapress

A informação que trago a seguir, no entanto, deve surpreender mais gente. “O mundo”, diz o poeta, “é um moinho”. E prossegue: “vai triturar teus sonhos tão mesquinhos”. Ou pelo menos era assim que eu cantava. Não podia ser “teu sonho tão mesquinho”, pra rimar com moinho? Claro que não, porque são tantos nossos sonhos mesquinhos. E que expressão perfeita pra definir nossos desejos tão risíveis e nossas ambições tão banais. Toda vez que o mundo atropelava um sonho, lembrava o Cartola: “dane-se, era mesquinho mesmo”.

Foi um português, o letrista e poeta Tiago Torres da Silva, quem me abriu os olhos. “Tão mesquinho!”, corrigiu o fadista. A princípio encarei a correção como fruto da empáfia europeia. “Lá vem o colonizador querer me ensinar até Cartola.” Até que o amigo pôs a gravação original pra tocar. E o português tinha razão. Cartola canta “mesquinho”, no singular. Ouvi duas, três, sete vezes. Não resta dúvida. Mas “mesquinho” não concorda com sonhos? Não. Mesquinho é o mundo. Eita. Claro.

Meu mundo caiu. No meio do mesquinho tinha uma pedra. No meio do caminho tinha uma vírgula. O mundo é um moinho. Ponto. Vai triturar teus sonhos. Vírgula. Tão mesquinho. Isso muda tudo. Pra melhor. A mesquinhez está no mundo, claro, que mói nossos sonhos, não nos sonhos, coitados –que vinham sendo acusados injustamente esse tempo todo.

Mas nem tudo está resolvido. Fui ouvir o Cartola outra vez pra escrever a coluna e, nessa madrugada, de fone, eis que ouço o resquício de um “s” após o mesquinho —muito abafado, um vulto sonoro, podendo ser um suspiro, ou um chiado.

Cabe ao leitor imputar a mesquinhez a quem preferir. Fico com o mundo, esse moinho mesquinho —de sonhos imensos.

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