Gregorio Duvivier

É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos.

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Gregorio Duvivier

Os maiores credores do mundo nunca nos cobraram nada

Os povos que hoje passam fome são os mesmos que cederam suas tecnologias de graça, da canoa à catuaba

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No auge da crise da dívida grega, eu me lembro de alguém sugerir: se pagássemos um centésimo de centavo a cada vez que ensinamos o teorema de Pitágoras ou usamos o teorema de Arquimedes, se os psicanalistas repassassem um real da consulta a cada vez que usam Édipo e os coaches depositassem um dólar por cada vez que citassem o mito da caverna —nunca mais haveria crise na Grécia.

Colagem com foto de criança indígena com duas faixas vermelhas no rosto. Ela segura uma peneira com estrelas
Catarina Bessel/Folhapress

Mais: se cada democracia do mundo pagasse royalties ao país que inventou o sistema, como pagamos a Bill Gates pelo Windows, e se Hollywood pagasse direitos autorais aos inventores da comédia e a Broadway aos inventores do teatro musical, Angela Merkel é que teria de pedir o perdão da dívida.

“Os tupinambás são os nossos gregos”, prova o Rafael Freitas da Silva em “O Rio Antes do Rio”, puta livro sobre a civilização que habitava a Guanabara.

E o mesmo poderia ser dito dos ticunas, dos aimorés ou dos ianomâmis. Junto com a terra e o ouro roubamos muitas tecnologias —em troca de alguns presentes de grego. Se cada “tapioqueria” que abre no mundo pagasse um trocado pra Apib, se cada loja de suco transferisse um centavo pelo açaí, mamão, maracujá ou abacaxi, se o Cinemark pagasse um centavo por cada pipoca, a lista da Forbes estaria cheia de crenaques, xavantes e guajajaras.

Os incas inventaram a batata e o tomate por meio de séculos de seleção artificial —e nunca ganharam nem um trocado sequer. Imagina se os italianos pagassem ao Peru por cada molho ao sugo, e os americanos pagassem um troco por cada pizza, e a Inglaterra um “penny” por cada batata supostamente inglesa. Os astecas deram o chocolate de graça pra Nestlé. Imagina se os suíços transferissem pro México um centavo de franco por cada Kit Kat.

Ainda há quem reclame quando indígenas usam nossas tecnologias. “Se eu não posso usar celular”, diz o Edson Kayapó, “você também não pode tomar banho todos os dias”. Tinha esquecido dessa: os caras ensinaram pra gente até as noções básicas de higiene. O índio civilizou o português, deu banho nele, tratou as feridas. Se houver separação de bens na Justiça, estamos fritos.

Os povos que hoje passam fome são os mesmos que cederam todas as suas tecnologias de graça, do banho ao boldo, da canoa à catuaba. Tenho pensado nisso porque surgiram vaquinhas pra tentar mitigar os efeitos da pandemia entre os indígenas. A gente não tem só culpa, também tem dívida e precisa pagar.

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