Gregorio Duvivier

É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos.

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Gregorio Duvivier

Os 101 dálmatas que habitam a imaginação de uma mesma criança

Nesta quarentena, o que tem me salvado é o convívio com a multidão que se manifesta numa menina de dois anos

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Quase não tenho encontrado com a minha filha. E olha que moramos na mesma casa. Nunca pensei que meu bebê fosse conquistar tão rápido a independência: aos dois anos e meio de idade, passa o dia inteiro sendo outras pessoas e fica chateadíssima ao ser tratada por seu nome.

“Não sou a Marieta! Eu sou o Lollo.” Demoramos muito a entender que se tratava de um filhote do “101 Dálmatas” que aparece muito pouco no filme da Disney, quase um figurante. Marieta passou um mês inteiro repetindo sua única fala: “eu tô com fome”, com as patinhas no ar.

Na sua breve, porém intensa carreira de atriz, tem predileção por papéis pequenos, porém não menos complexos, como o mudo Dunga, da “Branca de Neve”, ou Jacko Mollo, um morcego coadjuvante numa das “Histórias da Mamãe Ursa”, da Kitty Crowther —autora que bem poderia ter reeditados seus livros, submersos junto com a Cosac Naify.

Na maior parte do tempo, claro, interpreta a própria mãe. “Meu amor”, ela grita pra mim, da sala, e eu já sei que está na pele da progenitora, “põe a Marieta pra dormir que eu tenho que trabalhar”? E então me entrega um coelho de pelúcia e se senta no chão, teclando freneticamente sobre um laptop improvisado, que consiste em dois pedaços de papelão grudados.

Outros personagens nasceram da sua cabeça, como “Maulêla”, uma versão recém-nascida de si mesma, que só faz dormir e chorar.

Falam muito dos “terrible twos” —a fase dos chiliques. Marieta talvez esteja nela. Por sorte, quase não a tenho encontrado. Quando insiste em não querer comer ou tomar banho, basta invocar outras personalidades que querem, como a recém-nascida Maulêla, que adora água, ou o cachorro Lollo, que sempre está pronto pra almoçar.

Outro dia, interpretando a mãe à mesa, chegou a comer brócolis! A atriz, que tem horror a qualquer coisa verde, fez esse sacrifício porque sabe que a personagem adora.

Não estou dizendo que já escolheu essa profissão ingrata —nem quero rogar uma praga dessas a uma pessoa tão jovem. Mas entendi, junto com ela, o barato desse ofício que não passa de uma desculpa pra fazer tudo aquilo que a gente não pode, ou não quer, ou não pode querer.

Não sei qual é o momento da vida em que a gente decide que tem que ser uma pessoa só. Parte da exaustão que caracteriza a vida adulta vem da convivência ininterrupta consigo mesmo. “Não posso viver comigo, nem posso fugir de mim.” O que tem me salvado, nessa quarentena interminável, é o convívio com a multidão que habita uma criança de dois anos.

Colagem com foto de uma menina e foto da cabeça de um cachorro dálmata aplicada em cima da metade superior da cabeça da criança. Ela segura um brócolis em uma das mãos e veste camiseta branca, calça preta e meias rosas com detalhes vermelhos
Catarina Bessel/Folhapress

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