Gregorio Duvivier

É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos.

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Gregorio Duvivier

O corrupto que chefia quadrilha passou a ser tratado como desbocado

Dois anos de um governo irônico resultaram nessa terra arrasada, e nunca uma piada ruim foi tão longe

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Esse governo deve ser ótimo pra quem trabalha com humor —dizem aqueles que não trabalham com humor. Quem vive de fazer rir tem passado maus bocados. Não se faz paródia de uma paródia. As sátiras só funcionam pra desmontar quem se leva a sério. Não tem graça rir do que já se assume como ridículo. A piada então se volta contra você: parece que foi você quem não entendeu.

Ilustração mostra Bolsonaro olhando para um espelho, que reflete seu rosto e, em vermelho, o número "220 mil"
Catarina Bessell/Folhapress

Percebi o poder da ironia na adolescência. Passei anos falando o que pensava. Quem fala o contrário do que pensa acerta até quando erra. É impossível discordar de quem não se sabe o que pensa. O irônico traveste de sagacidade sua covardia. Ganha um salvo-conduto pra ser babaca, porque afinal só está tentando fazer rir —mesmo que ninguém esteja rindo. A longo prazo, no entanto, perde tudo. A ironia não permite que se criem vínculos —debaixo do seu cavalo não cresce grama.

“Qualquer um que tenha a petulância herética de perguntar a um ironista o que ele na verdade defende acaba parecendo histérico ou pedante”, diz o Foster Wallace, em tradução do Sérgio Rodrigues. “A ironia, embora prazerosa, tem uma função quase que exclusivamente negativa. É boa pra limpar o terreno.”

Dois anos de um governo irônico resultaram nessa terra arrasada. Nunca uma piada ruim foi tão longe: precisamente 225 mil mortos. Como representante dos alunos da última fileira, é duro pra mim admitir: Bolsonaro pertence à turma do fundão. Não se tem acesso ao que ele pensa de verdade —há quem diga que o contato prolongado com o mercúrio, na época do garimpo, fez com que ele nem sequer pense.

Seu motor é a provocação. Quando dá cloroquina pra uma ema, está fazendo uma paródia de si mesmo —adianta a cena que um humorista faria ao imitá-lo, tornando a profissão obsoleta. Não tem graça rir do seu gesto, porque rir é precisamente o que ele queria que você fizesse. Mesmo quando fala sério, finge que faz piada. Quando disse que acabou com a Lava Jato, alegou, no dia seguinte, que estava sendo irônico.

Ao mandar a oposição “enfiar o leite condensado no rabo”, operou um milagre: paramos de falar em desvio de verba e passamos a falar em “quebra de decoro”.

O corrupto que chefia uma quadrilha passou a ser tratado como um simples desbocado. Quando um crime é cometido, pouco importa se o assassino está nu.

Permitam-me: foda-se a quebra de decoro. Em qual rabo caberia tanto leite, senão no cuzão que nos governa?

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