Gregorio Duvivier

É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos.

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Gregorio Duvivier
Descrição de chapéu

No Brasil, a história se repete como um remake produzido pela Record

Brasileiro tem olheiras fundas de quem passou a noite em claro e esbarra no mundo bem dormido

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Durante muito tempo, fui dormir tarde. Varava a noite em botequins hoje extintos com amigos hoje desaparecidos comendo pratos hoje cancelados. Tentava voltar pra casa antes de ser obrigado a interagir com aqueles que já estavam no dia seguinte.

Nem sempre conseguia. Terminava quase sempre esbarrando em diurnos bem dispostos e seu sorriso de academia de ginástica, suas bochechas amassadas de travesseiro, seu cheirinho feliz de pós-barba. Detestava ver neles aquilo que eu tinha perdido na noite em claro: a esperança de um grande dia pela frente.

Homem segura enxada ao lado de lápide onde está escrita a palavra "Brasil" e há a bandeira brasileira
Ilustração de Catarina Bessel para coluna de Gregorio Duvivier, publicada em 24 de março de 2021, no jornal Folha de S.Paulo - Catarina Bessel

A paternidade inverteu o jogo. Passei pro time inimigo. Saía de casa esbarrando naqueles que ainda não tinham voltado. Aprendi, aos poucos, a fruir das delícias da manhã —seus pães fresquinhos, seus pássaros em festa, seus nenéns em flor. A manhã, afinal, é o filé-mignon do neném. Não há momento mais propício a risadinhas do que a alvorada, o horário nobre da primeira infância.

Eis que o mundo se prepara pra sair da pandemia —como quem acorda de uma noite longa. Os Estados Unidos já planejam uma grande aglomeração pro Quatro de Julho. O Chile já vacinou quase metade da população —em breve deve retomar o calendário de protestos. Por aqui, vemos o mundo tirar férias como um aluno que ficou de recuperação. Nossas 2.000 mortes diárias deixam claro: nosso ano ainda está longe de acabar.

O brasileiro, hoje, tem olheiras fundas de quem passou a noite em claro e esbarra no mundo bem dormido que começa um dia feliz. Já é amanhã, mas pra gente continuará sendo ontem. E depois de
ontem virá o anteontem.

Há quem diga que estamos no Dia da Marmota. Quem dera. O Brasil sofre de complexo de Benjamin Button. Os dias não são os mesmos. São sempre a véspera. Que dá lugar à véspera da véspera, e assim passamos da Idade Média ao Neolítico.

Por aqui, o século 20 pariu o 21, que deu lugar à idade Média, que está gerando uma espécie de Neolítico. A história se repete não como tragédia nem como farsa mas como um remake da Record —o filme é pior que a novela, que é pior que a Bíblia.

Nos próximos meses acompanharemos países acordando pra vida, viajando, festejando, retomando a economia. Por aqui, a noite deu lugar à noite. O governo conseguiu uma proeza. Proibiu o Sol de raiar. Isso não nos impedirá de ver o resto do mundo curtindo a alvorada.

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