Gregorio Duvivier

É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos.

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Gregorio Duvivier
Descrição de chapéu

No ato anti-Bolsonaro senti que já não estávamos esperando nada

Vi uma multidão caminhando, não pra chegar a algum lugar, mas pra estar no mesmo lugar, ao mesmo tempo

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Tenho tido sonhos em que uma multidão de pessoas entra pela minha porta. Parece uma festa, mas logo vira uma reunião de trabalho, que logo vira um enterro, que vira um Carnaval. Percebo que tudo aquilo que não aconteceu durante a pandemia inteira está acontecendo de uma vez só.

Não sei se é sonho ou pesadelo.

Tenho medo de tudo aquilo que a gente combinou pra depois da pandemia chegar ao mesmo tempo, sobretudo porque já não sei se as coisas que paramos no meio ainda fazem sentido.

Colagem com foto de Gregorio Duvivier, que veste terno preto e sapato social, esticando um dos braços para frente tentando alcançar uma vacina pendurada em sua frente por uma vara que está apoiada em sua cabeça. A vara está presa na parte de trás da cabeça por uma faixa amarela que dá a volta na cabeça de Duvivier. O fundo é todo branco.
Publicada nesta terça-feira, 1º de junho de 2021 - Catarina Bessel/Folhapress

Imagina que despetrificassem os corpos de Pompeia e, por algum milagre, todos voltassem à vida. Aquele cidadão que virou estátua enquanto estava se masturbando dificilmente vai ter clima pra terminar o que ele começou.

Faz mais de um ano que a gente vive esperando por coisas que a gente não sabe mais se quer. Já não sei se vou ter paciência pra uma festa, desenvolvi aflição de proximidade e me sinto meio pelado sem máscara. A pandemia deu um pause no planeta e de lá pra cá algumas coisas apodreceram.

“Você ainda está assistindo?”, pergunta a Netflix quando pausamos por muito tempo. Tenho me perguntado: ainda estou assistindo? Onde foi que eu parei minha vida? Quem era quem nessa série? Já não faço ideia. Será preciso um vinheta introdutória: “Previously on ‘Lost’...”.

Ninguém faz ideia do que é que nos espera depois da luz no fim do túnel, mas ela está ali, no mesmo lugar de sempre. Faz um ano que a saída está a seis meses de distância —pelo menos pra mim, que evitei ouvir quem dizia o contrário.

Ainda assim percebia que a luz se afastava à medida que passava o tempo. Como o burrico do desenho animado, andamos em direção a uma cenoura amarrada na ponta de uma varinha. Não percebi, ou fingi não perceber, que a varinha estava amarrada na minha testa.

No sábado fomos às ruas. Vi uma multidão distanciada, caminhando sem aglomerar, não pra chegar a algum lugar, mas pra estar no mesmo lugar ao mesmo tempo.

Vi pessoas de luto pelos pais, pelos irmãos, pelo melhor amigo. Vi amigos que eu não via há mais de um ano. Vi pessoas que eu nunca tinha visto na vida. Vi pessoas que eu nunca tinha visto na rua.

Não vi uma só pessoa sem máscara. Não vi muitas bandeiras do Brasil, mas não me fez falta.

Senti, pela primeira vez no último ano, que já não estávamos esperando nada. O feitiço foi quebrado. Alguma coisa estava acontecendo ali, no momento presente. Não era grande coisa, mas era coisa à beça.

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