Gregorio Duvivier

É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos.

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Gregorio Duvivier

O maior gesto do nosso imperador foi um berro, o país já nasceu na gritaria

Nossa independência só vai acontecer quando ela for proclamada ao pé do ouvido

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Algumas tecnologias vieram pra acabar com o pouco que nos restava de paz. O bluetooth, por exemplo. Não que eu tenha horror a ele, ele é que tem horror a mim. Trata-se de uma tecnologia voluntariosa, cheia de implicâncias, corpo mole e má-vontade --astrólogos dirão que é geminiana.

Responsável por conectar dois aparelhos, o bluetooth faz a ponte quando dá na telha e quando tem química. "Desculpa, mas o encontro do seu Galaxy com sua JBL não não deu liga. Estão em momentos diferentes de vida e alegaram incompatibilidade de agenda."

Acontece inclusive de dois aparelhos serem velhos conhecidos e, do dia pra noite, resolverem fingir que não se conhecem. E às vezes rola o contrário: sua caixinha teve um breve caso de uma noite com o celular do vizinho --mas pro resto da vida ela ficará reconhecendo aquele celular, lembrando dele como um ex que não superou o divórcio.

Existe apenas uma ocasião em que bluetoooth é infalível: quando se trata de perturbar o silêncio da vida em comunidade. O advento da caixinha de som acabou com a paz na esfera pública. Já existia uma solução pra quem gostava de ouvir música na rua: o fone de ouvido. A caixinha é uma espécie de fone que todo o mundo à sua volta é obrigado a colocar no ouvido também. Ir à praia se tornou uma experiência enlouquecedora: os Barões da Pisadinha se misturam aos Aviões do Forró, cada um num tom e num compasso, e de repente você está ouvindo os Aviões da Pisadinha.

Ilustração de caixa de som usando fones de ouvido e com pernas vestindo uma bermuda laranja com estampa de coqueiros
Catarina Bessel/Folhapress

O problema é que o brasileiro não reconhece o silêncio como um direito. Tenho a impressão de que a caravela de Pedro Álvares Cabral já ancorou por aqui fazendo um furdunço, com o famoso "terra à vista!". Trezentos anos depois ainda estávamos urrando. Nossa independência, afinal, foi proclamada com um brado, famoso por ter sido retumbante. O gesto mais famoso do nosso imperador foi um berro. Nosso país já nasceu na base da gritaria.

Tivesse Dom Pedro proclamado a Independência com um sussurro, talvez não tivessem ouvido do outro lado do Ipiranga. Mas tenho certeza de que estaríamos em melhores lençóis.

O imperador gritou, se esgoelou, e foi embora. Na contramão, nosso produto de maior aclamação internacional foi justamente a voz do João Gilberto. Nossa maior contribuição pro mundo, quem diria, é o sussurro. Foi o cochicho que nos levou ao topo das paradas de sucesso. O Brasil é gigante quando fala baixinho. Nossa independência só vai acontecer quando ela for proclamada ao pé do ouvido.

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