Gregorio Duvivier

É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos.

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Gregorio Duvivier
Descrição de chapéu

Uma mesma canção do Caetano poderá ninar seus filhos e assombrar você

Estar vivo ao mesmo tempo que o cantor nos permite assistir ao espetáculo do surgimento das coisas eternas

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Uma velha piada judaica conta que o rabino, no leito de morte, balbuciou a tão aguardada frase, conclusão de cem anos de estudo: "a vida é como uma fonte". A máxima maravilhou o mundo até que alguém teve a audácia de perguntar por que é que a vida seria como uma fonte. Ao que o rabino pensou, pensou e respondeu: "tá bom, então a vida não é como uma fonte".

A primeira vez que ouvi a música "Cajuína" tinha poucos anos de idade. Minha mãe cantava como se fosse uma canção de ninar, bem devagarinho. Adolescente descobri, no falecido Ballroom, no Humaitá, que se tratava de um forró —foi ao som dela que descobri que não sabia dançar. Aos 17, um amigo me fez prestar atenção na letra, dizendo se tratar de uma canção homoerótica (ele cantava: "pois quando tu me deste a rosa pequenina", e dizia: "é o cu!", "tampouco turva-se a lágrima nordestina", e ele dizia: "é a dor de dar o cu!"). Foi só com uns 20 e poucos anos, quando achava que nada mais podia se esconder naqueles dois minutos e 19 segundos, que descobri a verdade —nem canção de ninar, nem xote festivo, nem pornográfico, mas o encontro de Caetano com o pai do amigo morto. E tudo se iluminou —mas não pra sempre. Ainda olho pra música desconfiado, imaginando o que ela pode aprontar.

Colagem com foto em preto e branco de uma mão segurando uma flor, na qual há um sorriso no lugar das pétalas
Catarina Bessell

Uma mesma canção do Caetano poderá ninar seus filhos, orientar seu Carnaval e assombrar você pelo resto da sua existência. Não consigo sentir ciúme sem pensar numa flecha negra, ouvir a palavra "impávido" sem emendar em Mohammed Ali —nem falar a palavra americanos sem seu "e" aberto, como em "americanos são muito estatísticos", verso que precede o mantra: "aqui embaixo a indefinição é o regime/ e dançamos com uma graça cujo segredo nem eu mesmo sei".

Bandeira elegeu "tu pisavas nos astros distraídos" o verso mais bonito da língua portuguesa. Caetano transformou-o no segundo verso mais bonito, ao escrever: "Tropeçavas nos astros desastrada", forçando toda uma geração de poetas à aposentadoria.

Com Caetano descobri que que o antropólogo Lévi-Strauss detestou a baía de Guanabara, e que Hollywood quer dizer Azevedo, que melhor que o silêncio só João, que os Estados Unidos são um país sem nome, enquanto o Brasil é um nome sem país, que os deuses são cabeças de bebês sem touca, que a coisa mais certa de todas as coisas não vale um caminho sob o sol, que os átomos todos dançam e coragem grande é poder dizer sim, que cantar é mais do que lembrar, é mais do que ter tido aquilo então.

Caetano está prestes a lançar um disco novo com uma dezena de faixas —que hão de nos assombrar pelas próximas décadas. Dez bombas de efeito retardado, que podem ser detonadas em questão de dias, meses ou séculos. Consigo me imaginar no leito de morte, tendo uma epifania: "Eu… Entendi… 'Araçá Azul'"!

E então alguém dirá que não tem o que entender, e eu terei a alegria de corrigir, como na velha piada: "Tá bom, então... Eu não... Entendi… 'Araçá Azul'".

Uma coisa bela é uma alegria pra sempre, dizia o Keats, que também disse, sobre um vaso grego, em tradução do Augusto de Campos: "quando a idade apagar toda a atual grandeza/ Tu ficarás, em meio às dores dos demais". Keats, coitado, nasceu 2.000 anos depois do vaso. Não viu sua musa ser pintada.

Estar vivo ao mesmo tempo que Caetano nos dá essa sorte infinita: a de presenciar o espetáculo do nascimento das coisas eternas.

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