Gregorio Duvivier

É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos.

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Gregorio Duvivier
Descrição de chapéu

Por que humoristas não sabem dançar —a não ser ironicamente

Foi o Jorge, a voz que habita minha cabeça, quem atrasou o início da minha vida sexual em anos

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Durante o confinamento consegui esquecer que não sabia dançar. A volta das festas acabou de trazer à tona o maior dos meus destalentos —são tantos.

Nesse caso, a culpa não é minha, mas de uma voz com a qual sou obrigado a conviver desde que me entendo por gente.

Freud chamava essa voz de superego. ("Olha quem tá falando de Freud!", diria ela. "Nunca leu Freud e fica citando.") Não gosto do termo superego porque dá importância demais pra uma vozinha safada. ("Olha ele, nunca leu Freud e já quer discordar de Freud!") Fica parecendo que a voz tem superpoderes. Não tem.

Por isso prefiro chamar de Jorge —trata-se de uma pessoa comum, que nunca fez nada de grandioso na vida a não ser passar o dia inteiro me avisando: "Esse teu sorriso tá esquisito. Agora ficou sério demais.

Olha no olho dela enquanto ela fala. Mas não olha demais. Tá parecendo um psicopata. Olha pra outro lugar. Pro peito não!"

Foi o Jorge quem nunca me deixou dançar. Basta mexer meus pés que ele começa. "Que tipo de pessoa é essa que você tá fingindo que é? Que mãozinha pro alto foi essa? Mão de homem é sempre abaixo do ombro. Não. Você botou a mão no joelho?"

Foi o Jorge quem atrasou o início da minha vida sexual em anos. Só comecei a beber porque precisava calar a boca dele. Cerveja dá uma bela amansada no Jorge, vinho dá um tabefe na cara dele, cachaça dá uma coronhada na sua cabeça. Só que no dia seguinte ele volta na pior versão possível. Na ressaca, ele ganha um alto-falante e passa pela rua feito o caminhão do ferro velho: "Você está velho, você vai morrer, você é um merda velho que vai morrer".

Colagem de Catarina Bessel sobre a obra 'A Dança' de Henri Matisse. Uma das cabeças das pessoas dançando foi substituída pela de Gregorio Duvivier.
Publicada nesta terça-feira 14 de dezembro de 2021 - Catarina Bessel

Talvez seja uma deformação profissional. Todo comediante tem um Jorge mais bombado do que deveria. Pode perceber: humoristas nunca dançam —a não ser ironicamente. Parece que estão dançando mas é uma paródia, é o Jorge quem está dançando no lugar deles.

Minha relação com Jorge só melhorou quando, cansado de tentar dopá-lo, o botei pra trabalhar pra mim. Passo a vida tentando transformar esse pitbull numa vaca leiteira. Quando preciso extrair graça da cara de uma pessoa, convoco o Jorge: "O que é que você diria dela, se ela por acaso fosse eu?".

A profissão do humorista consiste em dispensar ao mundo o mesmo tratamento tóxico e abusivo que os seres humanos reservam apenas a si mesmos. Sim, trabalhamos no ramo da mercantilização da neurose.

"Olha esse bosta tentando falar difícil", diz o Jorge, aqui ao meu lado.

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